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“SERVIRÁ ESTE LIVRO PARA O REGISTRO DOS ÓBITOS DOS FILHOS DA MULHER ESCRAVA”: O REFLEXO DA LEI N° 2.040 DE 28 DE SETEMBRO DE 1871 NA VILA DE CAMPO MAIOR (1873-1883)


Jéssica Gadelha Morais
Mestra em Arqueologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), Especialista em História e Cultura Afro Brasileira. Graduada em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Email: moraisjg07@gmail.com

Resumo: As inquietações aqui trabalhadas se referem aos filhos da mulher escrava ou filhos do ventre livre cujos registros de óbitos, localizados na Secretária da Paróquia da Catedral de Santo Antônio em Campo Maior-PI, apontam como local de sepultamento o cemitério Santo Antônio, em contrapartida nenhum indicio arqueológico desse grupo foi encontrado no acervo funerário em questão. Dessa forma o objetivo é analisar os registros eclesiásticos de óbitos de crianças após a Lei n° 2.040 de 28 de setembro de 1871 almejando identificar as experiências por elas vividas. O recorte temporal coincide com o primeiro e o último registro efetuado, respectivamente de 1873 a 1883. O percurso metodológico da elaboração do trabalho contou com a pesquisa bibliográfica sobre a escravidão. Para ajudar na identificação dos senhores da mulher escrava foram utilizadas as lápides do cemitério Santo Antônio que esteve em atividade para sepultamentos entre os séculos XIX e XX.  O resultado aponta que foi em decorrência da condição criada pela Lei que as crianças em questão puderam ser sepultadas na referida necrópole ainda que com sepulturas temporárias.  Dessa forma a ausência de vestígios materiais do grupo social investigado no cemitério está ligada a rotatividade de sepultamentos. Em relação às condições de vida a lei pouco refletiu na amenização do cativeiro, e assim seguiram até a morte sendo propriedade de um senhor, os mesmos donos de suas mães.

Palavras- chave: Livro de óbito. Mulher escrava. Filhos de mulheres escravas. Campo Maior- PI


A Lei n° 2040 de 28 de setembro de 1871 também conhecida como Lei do Rio Branco ou Lei do Ventre Livre é um dos diversos mecanismos elaborados para protelar o fim da escravidão. Essa lei declarava que a partir dessa data as crianças de escravas que nascessem “não seguiria mais o ventre” (CARDOSO; MOREIRA, 2015, p.82). Trata-se do surgimento de uma nova figura social no interior da sociedade escravocrata, o ingênuo, que habita em um limbo social, pois não tem a condição de livre nem de escravo. “Os filhos do ventre escravo não teriam mais a condição social de suas mães, mas também não teriam a possibilidade de ser livres” (CARDOSO; MOREIRA, 2015, p.92) até a idade de 21 anos, à época essa idade considerada maioridade. A referida lei limitava a liberdade das crianças, que se libertavam da escravidão, mas na maioria das vezes seguiam sob a tutela estatal ou de particulares, esses por sua vez podiam ser os próprios senhores de suas mães. No caso de haver reivindicação da indenização por parte do senhor da mãe do filho que atingira os 8 anos o Estado perdia dinheiro e ainda tinha que ter um local para recepcioná-los, denominada por Maria Claudia  de Oliveira Martins e  Renilda Vicenzi (2013) de instituições asilares.
Em seu artigo 8° parágrafo cinco a lei estabelecia que os párocos eram obrigados a ter livros especiais para os registros dos nascimentos e óbitos das crianças  nascidas desde a data desta lei. O pároco que se omitisse pagaria uma multa de 100$000 (MOREIRA, 2013). Atendendo a esse disposto, em 31 de janeiro de 1872, o presidente da província do Piauí Dr. Manoel do Rego Barros Sousa Leão rubricou os livros necessários para tais registros, a fim de serem convenientemente distribuídos pelos párocos da província (COSTA, 2010).

Livro de óbito destinados aos filhos da mulher escrava na Vila Campo Maior
“Servirá este livro para o registro dos óbitos dos filhos da mulher escrava e corridas da data da lei nº 2040 de 28 de setembro do anno passado.Palácio do Governo do Piauhy, 19 de janeiro de 1872”. [***] Manoel do Rego Barros Leão.

O livro trás alguns aspectos que merecem ser evidenciados. O termo de abertura do livro data de 19 de janeiro de 1872. Dessa data para o primeiro registro de óbito transcorre 1 ano e 3 meses, e do primeiro para o último se passaram mais 10 anos. Cada termo menciona apenas o nome (pré-nome) da mãe, o nome do proprietário das mães das crianças, e todos os registros apontam como local de sepultamento o Cemitério da Irmandade Santo Antônio. No total, o livro possui 50 registros de óbito em duplicatas, entre os quais 49 são descritos como filhos naturais e um (1) é descrito como filho ilegítimo. Um desses 50 assentos o pároco menciona a cor da pele da criança:

 No dia quatro de setembro de mil oito centos setenta e oito falleceu Icipião, pardo, nascido a vinte nove de maio do dicto anno, filho natural de Theodora, solteira, escrava de Jozeph Fernando Alves morador nesta Villa de Campo Maior: seu cadáver foi sepultado no dia cinco do mesmo mez e anno no Cemitério da Irmandade de Santo Antônio. E para constar faço este assento, que assigno.

Dessa colocação cabe se perguntar: Por que só o registro de Icipião traz a descrição da cor da pele e os outros assentos de óbito não? “Pardo” seria uma designação utilizada com intuito de registrar uma diferenciação social, digo uma condição social e jurídica? O Piauí ainda não possui um estudo especifico para essas tipificações de cor de pele nos registros. Preto era sempre escravo, os demais não temos como afirmar. Icipião, filho de Theodora, faleceu com 3 meses de idade. O senhor de sua mãe, Jozeph Fernando Alves, era morador da Vila de Campo Maior o que deixa abertura para inferir que o mesmo poderia ser natural de outra localidade da mesma província ou até mesmo de outra província. Outro aspecto observado no registro de óbito diz respeito às práticas do enterramento, sempre um dia após a data do óbito. Durante esse intervalo de tempo é possível a realização de outras práticas funerárias, ressaltando que o enterramento é apenas uma delas.
Barros, o vigário que assina os assentos, também era proprietário de escravas, mães das crianças que tiveram vida curta. Logo não era somente tenente coronel, coronéis, fazendeiros que possuía escravos, mais ainda o homem religioso. Cardolina e Maria aparecem citadas como sendo escravas da propriedade de Barros.

No dia onze de julho de mil oito centos setenta e quatro faliceu da vida presente Paulo, Nascido a dez de dezembro de mil oito centos setenta e dois, filho natural de Cardolina, solteira, escrava do Padre Manoel Félix Cavalcante de Barros [...].

No dia quatorze de agosto de mil oito centos setenta e quatro faliceu da vida presente Pedro, nascido a dez de dezembro de mil oito centos setenta e dois, filho natural de Cardolina, solteira, escrava do Padre Manoel Félix Cavalcante de Barros [...].

No dia desesseis de novembro de mil oito centos e oitenta e três faleceu pelas onze horas da noite Antonio, nascido a dez de maio do dicto anno, filho natural de Maria, solteira, escrava do Padre Manoel Félix Cavalcante de Barros [...]

 As duas primeiras passagens trazem o mesmo nome de escrava, Cardolina. Era ela a mesma pessoa? Digo a mesma escrava? Se sim é possível que Paulo e Pedro fossem gêmeos. Ambos nasceram no mesmo dia, partilharam do mesmo ventre, no entanto a morte ceifou primeiro a vida de Paulo vindo Pedro falecer um (1) mês depois. Embora nos assentos não constem a causa da morte é possível refutar “o mal de sete dias” mencionado por Falci(2004), já que na data do óbito a idade com que faleceram (quase 2 anos) excede o número de dias pelo qual ficou conhecido o mal (7 dias). Nos registros de óbito de Pedro e Paulo destaca-se ainda a presença de uma crença em uma outra vida a partir do momento em que menciona que  ambos os meninos “faleceram da vida presente” o que não inviabiliza a existência de outra vida. Outra observação é a de que apesar dos registros possuírem a mesma estrutura algumas informações estão presentes em uns e outras não como, por exemplo, a hora aproximada em que veio a falecer Antonio filho de Maria, a outra escrava de Barros.
 Antônia, filha de Caetana escrava de propriedade de Olympia Cavalcante Barros essa provavelmente irmã do referido padre Barros, em sua breve infância gozou de pouco tempo de convivência com a mãe uma vez que essa é mencionada como já falecida à época do registro de óbito da pequena. Em semelhante caso está a pequena Joanaa que faleceu aos 14 meses e já não contava mais com a mãe Raimunda escrava de Roberto Joze Muniz. Teria a mãe falecido em decorrência de parto? É uma possibilidade. E Antônia e Joanna como viveram suas breves vidas sem suas mães? Nascida em dezoito de fevereiro de mil oitocentos e setenta e sete e falecida em dez de novembro do mesmo ano, sob que cuidados Antonia vingou até quase seus 9 meses de vida? E Joanna seus 14 meses?
 Estudos que abordam estratégias tecidas por escravos para estabelecerem vínculos de parentesco demonstram que três eram os caminhos possíveis: padrinhos escolhidos entre membros da escravaria; da própria família de seu senhor ou pessoas livres de outras famílias; ou ainda a escolha de um santo. de devoção. Ambas com a ausência das mães tão prematuramente necessitaram de cuidados materiais, físicos, logo se exclui o seu apadrinhamento por santo de devoção. Portanto as madrinhas, elegidos entre os escravos ou de pessoas livres devem ter sido sua cuidadoras. Débora Gonçalves Silva citando Falci (2012) diz que o apadrinhamento ligado a espiritualidade não foi prática comum.
 Em um dos assentos de óbitos pesquisados o batizado é contemplado
No dia vinte um de abril de mil oitocentos e setenta e trez , tendo nascido uma criança filha natural de Teresa, solteira, escrava do Tenente Coronel Honório Jose Nunes Bona foi baptisada em casa por necessidade com o nome de Manoel, e tendo falecido no mesmo dia, foi sepultado no dia vinte dois no cemitério da Irmandade de santo Antônio desta Villa de Campo Maior.

A efetivação do batismo estava ligado a duas necessidades: a preocupação de cumprir os princípios cristãos; ou o interesse de estabelecer laços de proteção e solidariedade através de compadrio. No contexto da citação é possível que a necessidade ocorresse por conta da percepção de uma morte iminente. Era necessário morrer cristão, e nesse contexto por que não o apadrinhamento espiritual? O local da realização do batismo também deve dizer algo. Entende-se casa como a propriedade do senhor ou do escravo? Acredita-se que seja uma referência a casa do escravo, já que conforme Melo (1983) havia uma quadra destinada para a residência dos mesmos, “rua dos negros” (MELO, 1983, p.100)
A análise do livro em questão aponta para o Tenente Coronel Honório José Nunes Bona[1] como o proprietário com o maior número de escravos. O Tenente nasceu em dezembro de 1823 casou-se com dona Maria Joaquina e com ela teve 5 (cinco) filhos, dos quais apenas três (3) foram identificados: Antônio José Nunes Bonna, José Nunes Bona e Isaú José Nunes Bona. A família Bona Primo é uma das famílias naturais e tradicionais da cidade de Campo Maior. Dos 50 assentos 11 o menciona como o proprietário das escravas.

Proprietário
Mulher escrava
Filho da escrava
Nasceu em
Faleceu em
Idade







Tenente Coronel Honório José Nunes Bona
Teresa

Manoel
21/04/1873
21/04/1873
Mesmo dia em nasceu
Florencia
Constancia
26/08/1872
18/01/1876
3 anos e 4 meses
Florencia
Elizia
24/05/1874
26/01/1876
1 ano e 8 meses
Teresa
Luiza
01/07/1875
30/01/1876
6 meses
Florencia
Manoel

01/02/1876 ( RN)
RN
Maria
Maria

19/05/1881( RN)
RN
Brígida
Jozé
02/05/1881
01/1882
8 meses
Teresa
Rosa

16/02/1883
4 anos
Teresa
Antonino

01/03/1883
7  anos
Teresa
Constancia

05/03/1883
3 anos
Joaquina
Jorge

15/03/1883
1 ano
Tabela 1:  Escravas do Tenente Coronel Honorio J. Nunes Bona
Fonte: Livro de óbito dos filhos da mulher escrava

É provável que Teresa e Florencia, cada qual, fosse uma pessoa só, a repetição dos nomes ocorre em virtude do número de filhos que essas mulheres tinham e perdiam tão logo eles nasciam. Dessa forma o fato do tenente aparecer onze vezes não indica que ele tinha onze escravas, mas somente cinco (Teresa, Florencia, Maria, Brigida e Joaquina) ainda assim o maior número encontrado.
Além do Tenente Coronel Honório José Nunes Bona e do Manoel Felix Cavalcante de Barros outros proprietários de escravas foram identificados. O senhor Joze Rodrigues de Miranda, o major Antonio da Costa Araújo Filho e D. Ignes da Costa Araujo. As informações sobre Joze Rodrigues de Miranda provem de sua laje tumular (435) e de seu registro de óbito. Segundo a documentação escrita, o falecido era natural de Torem, Reino de Portugal, filho de Domingos Rodrigues de Azevedo e Maria Rodrigues de Azevedo. Era residente em Campo Maior e casado com D. Candida Rosa de Miranda. Ele faleceu de hidropesia aos 64 anos. Um aspecto interessante em sua laje tumular refere-se ao termo “legítimo” atribuído à esposa, mas não aos filhos, como apareceu em outras lápides. No entanto, se a esposa era legítima, consequentemente os filhos também seriam. Verifica-se ainda que mesmo sendo Luiz Rodrigues de Miranda casado, ele foi sepultado junto de sua família de origem, ou seja, junto de seu pai e de sua mãe, reconstituindo e atualizando simbolicamente sua casa, de identificação comum e de permanência e reprodução post mortem do grupo. Os filhos da mulher escrava não puderam reconstituir simbolicamente sua família, ainda que desprovida de pai, era sua família sua mãe e seus irmãos (MOTTA, 2012).
 Dentre os pequenos sepultados no Cemitério da Irmandade de Santo Antônio um (1) não era da Freguesia, mas por aqui morreu e logo ficou registrado no referido livro. Trata-se do caso de Francisca, filha de Luiza escrava de Francisco Lopes Frago.
No dia oito de abril de mil oito centos setenta e nove falleceu Francisca, de seis annos de idade, natural da Freguesia de Santa Quiteria da província do Ceará, e de presente nesta Villa de Campo Maior, filha de Luiza, solteira, escrava de Francisco Lopes Frago[...]

O que fazia Francisca nesta Villa de Campo Maior? Com quem veio? De que faleceu? Essas são perguntas cujas respostas se perderam com ela.
No que se refere às enfermidades que levavam a sepultura, não conhecedores das doenças que matavam muitas vezes os padres registravam um nome descritivo para a causa da morte.  Reis (1991, p. 36) referindo-se aos livros de óbito por ele consultado, comenta que a expressão moléstia interior “era usada quando não se podiam associar os sintomas do moribundo a uma enfermidade conhecida”. No livro pesquisado sete (7) morreram recém nascidos, cinco (5) viveram somente alguns dias. E apenas 5 apontam as causas das mortes: em um (1) registro de 1880 foi febre; e quatro (4) assentos de 1883 apontam a causa bexigas.
Adentrando nas causas das mortes contempladas em alguns assentos de óbito presente no livro constatamos o falecimento de Joaquina:
No dia três de maio de mil oito centos e oitenta falleceu de febres pelas quatro horas da tarde Joaquina, nascida a vinte quatro de desembro de mil oitocentos setenta e sete, filha natural de Francisca, solteira, escrava de Geraldo Francisco Braga[...]

Joaquina tem sua causa da morte atribuída a febres. Muitas são as causas que podem ocasionar febres, ou seja, ao certo não sabe o que ceifou sua vida. Quanto às bexigas levaram a sepultura Constância de três anos de idade (filha de Teresa escrava do Tenente Coronel Honório Jose Nunes Bonna), Jorge de um ano de idade (filho natural de Joaquina escrava do Tenente Coronel Honório Jose Nunes Bonna), Antonia de cinco anos de idade (filha de Athanasia escrava de Antonio de Sousa) e Antonino de sete anos de idade ( filho de Teresa escrava do Tenente Coronel Honório Jose Nunes Bonna )[...]bexigas” era o nome popular como era, à época, conhecida a varíola. A varíola é causada pelo vírus Orthopoxvirusvariolae. Ainda permanece desconhecido o período em que o vírus pode permanecer ativo dentro do corpo de um indivíduo por isso todas pessoas infectadas foram isoladas ou incineradas para evitar a contaminação de outras pessoas(SMITH, 2013). Sua transmissão pode ser de várias formas, mas a principal é por gotículas de salivas expelidas por pessoas infectadas ao falar, tossir ou espirrar. Existe a possibilidade de o vírus se espalhar pelo ar infectando as pessoas ao seu redor ou por meio de roupas ou outros objetos contaminados. A intensificação mais comum dos sintomas são: diarreias, vômitos, convulsões, delírios, pústulas purulentas pelo corpo provocando dores e pruridos. As vesículas são as características essenciais na identificação da doença, pois sua evolução provoca ulceras na pele formando crostas de tecidos mortos (THEVES; BIAGINI; CRUBEZY, 2014). A prevenção é a forma mais certa de evitar essa doença. No século XIX o conhecimento que se tinha da mesma era limitado com o avanço da medicina é que ela pôde ser melhor conhecida.
Retornando aos assentos de óbito verifica-se que a maior expectativa de vida constatada foi a de 7 anos, dois(2) casos, e 5 anos, com  três (3) casos. Em alguns dos assentos que data do ano de 1883[2] a necrópole aparece mencionada como Cemitério provisório da Irmandade de Santo Antônio. Ou seja, esses assentos de óbito ajudam a problematizar sobre o funcionamento do sepulcrário. Por que o cemitério nesse ano é mencionado como provisório? Seria isso já uma evidência de sua superlotação? Ou seria algo relacionado à sua localização? Se o cemitério começou a funcionar, conforme se supõe a partir da cultura material, em 1804, no ano de 1883 (época em que é citado como provisório), ele já contava com 79 anos de atividade. No entanto, funcionou até 1978 (data do último sepultamento). Portanto, de 1883 até 1978 foram 95 anos de uso estendido. Se em 1883 ele já estivesse lotado, como se pressupõe, como teria funcionado por mais 95 anos? Essa demora pode estar associada a alguma resistência da população? Ou na demora da escolha de um novo endereço para os mortos?Infelizmente esses questionamentos não puderam ser  respondidos. Faltam fontes para elucidar melhor essas questões (MORAIS, 2016).
Diante dos vestígios materiais e das fontes escritas se acredita que quanto ao uso estendido do sepulcrario uma alternativa adotada pode ter sido a rotatividade de sepulturas o que explica o silêncio da cultura material quanto a presença dos filhos da mulher escrava no cemitério Santo Antônio. Diante das características da doença varíola essa rotatividade pode ter sido um risco a saúde pública, em virtude do desconhecimento de até quando o vírus permanecia ativo no corpo do individuo.
O livro de registro de óbito termina com várias páginas em branco, demonstrando uma interrupção abrupta nos lançamentos. Não há o termo de encerramento como previsto. Tal interrupção nos leva a crer que os registros de óbito dessas crianças também se fizeram em meio ao dos escravos ou dos livres, portanto não seguindo a determinação da lei n 2.040 de 28 de setembro de 1871 em fazê-lo em livro específico.

Considerações finais

Os filhos da mulher escrava foram um dos sujeitos que repousaram na necrópole denominada Cemitério (da Irmandade) Santo Antônio, ainda que temporariamente. Eram crianças identificadas tão somente pelo pré-nome, criadas por suas mães e que tiveram irmãos que não chegaram a conhecer ou que desfrutaram de pouco tempo para compartilhar com eles o amor fraternal. Pode-se dizer que o reflexo da lei na vida das crianças foi pouco já que tal como suas mães continuaram ligadas a um senhor e, portanto viveram suas breves vidas no âmbito da escravidão. Na morte a lei propiciou a eles um livro especial, o que não os dava de fato uma definição, uma história ou até mesmo uma identidade. O que não os tornava especial, mas marginalizados. A existência do livro exigido por lei cumpria uma determinação legal e que a julgar pelas páginas em branco não foram fielmente cumpridas. Dessa forma o fato dessas crianças serem enterradas no espaço mortuário citado e de possuírem um registro de óbito especificado para eles, permite dizer que os mesmos gozavam de uma condição social diferenciada de suas mães, mas que livres eles não foram. A análise dos assentos de óbitos permite afirmar que nenhum deles chegou a completar a idade de 8 anos e conforme a Lei do Ventre livre até essa idade eles eram responsabilidade dos senhores de suas mãe que deveriam criá-los e tratá-los. A propósito diante das baixas expectativas de vida, da breve infância dos pequenos fica o questionamento de tais cuidados recebidos por seus senhores. Tudo isso só confirma o pensamento de Rui Barbosa que calculava que, se fosse esperado os efeitos da lei, a escravidão só estaria extinta nos meados do século XX (COSTA, 2007, p.337).

Referências

CARDOSO, José Carlos da Silva; Moreira, Paulo Roberto Staudt. Anjos marcados: o batismo dos filhos de ventre livre (Porto Alegre RS-1871/1888). Revista Brasileira de História & Ciências sociais. vol.7, n.13, Porto Alegre RS, jul. 2015 ,p. 82, p.92.
COSTA, Emilia Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 8ª Ed.São Paulo: Fundação editora UNESP,2007. p.337.

COSTA, F.A. Pereira. Cronologia Histórica do Estado do Piauí. 2° Ed.Teresina: APL; FUNDAC; DETRAN, 2010.
MARTINS, Maria Claudia de Oliveira; VICENZI, Renilda. Crianças de cor: os (des) rumos dos filhos do ventre livre. Cadernos do CEOM- ano 27, n.40. 2013.

MELO, Pe Claudio. Os primórdios de nossa história. Texto não publicado. Arquivo Público do Piauí. Sala de reservas relativas ao poder executivo e legislativo. 1983.p.100
MORAIS, Jessica Gadelha. Aqui jazem muitas histórias: estudo arqueológico do acervo histórico do cemitério Santo Antônio em Campo Maior – Piauí (1804-1978). Teresina, 2016. Dissertação (Arqueologia Histórica) - Universidade Federal do Piauí, 2016.
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Ingênuas mortes negras: doenças e óbitos dos filhos do ventre livre (Porto Alegre RS-1871/1888). Revista territórios & Fronteiras. vol.6, n.2, Cuiabá ,jul/dez, 2013.
MOTTA, Antônio. Pessoas, genealogias e lugares mortuários: lógicas de nominação, de
distinção e de reconhecimento entre elites brasileiras e portuguesas em cemitérios
oitocentistas. In: TRAJANO FILHO, Wilson (Org.). Lugares, pessoas e grupos: as lógicas
de pertencimento em perspectiva internacional. 2. ed. Brasília: ABA publicações, 2012.
SILVA, Déborah Gonsalves. Família escrava e compadrio na freguesia de São Raimundo Nonato-PI (1872-1888). Anais do VI Simpósio Nacional de História Cultural. Escritas da História: Ver- Sentir-Narrar. Teresina, 2012. Disponível em http://www.gthistoriacultural.com.br/VIsimposio/
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.  p.36
SMITH, K.l A. Smallpox: canwe still learnfromthejourneytoeradication. Indian Journalof MedicalResearch, v. 137, n. 5, p. 895–899, 2013.
THEVES, C.; BIAGINI, P.; CRUBEZY, E. The rediscoveryofsmallpox. ClinicalMicrobiologyInfection, v.  20, p. 210–218, 2014.
Fontes:
Lápide 47 do Cemitério (da Irmandade) de Santo Antônio

Lápide 435(1982-1908-1948) do Cemitério (da Irmandade) de Santo Antônio

Livro de óbito dos filhos da mulher escrava.


[1] Lápide 47
[2] . De acordo com os assentos de óbito de Rosa ( filha natural de Teresa), Antonino (filho natural de Teresa), Constância (filha natural de Teresa) e Jorge (filho natural de Joaquina) encontrados no Livro de óbito dos filhos da mulher escrava da Freguesia de Campo Maior (1873 a 1883) já em 1883 o cemitério aparece mencionado como provisório, embora não cite as causas.

Comentários

  1. Olá gostei da abordagem do artigo, a Lei do Ventre-Livre, promulgada em 1871 era apenas mais uma "lei para inglês ver". Com o decorrer da leitura percebemos que não há uma mudança significativa na vida dessas crianças que nasceram depois da lei, elas continuavam vivendo como escravas, pois ou conviviam com a mãe ou eram tuteladas pelo senhor da fazenda onde suas mães eram escravas. Infelizmente não me lembro a obra mas tem um trabalho que fala sobre como a lei do ventre livre separou as mães dessas crianças, com a libertação dos escravos em 1888 essas mães foram atras dos filhos que estavam na tutela dos senhores, mas elas não tinham como provar que eram mães dessas crianças e como eles ainda eram crianças ou adolescentes continuaram a serem tutelados pelos senhores.
    CAROLINE PINHEIRO DE OLIVEIRA

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    1. Boa noite! Essa lei só foi mais uma das leis que tentaram protelar o fim da escravidão. Fiquei interessada na obra que você cita, porém não recorda o nome. Caso lembre por favor compartilhe.
      Jessica Gadelha Morais. UFPI/UESPI.

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  2. Olá Jéssica. Gostaria de agradecer sua participação em nosso evento, especialmente no nosso St. Muito me interessou seu texto e sua pesquisa. Muito bem escrito e uma pesquisa de bastante fôlego. Destaco essa relação entre história e arqueologia nos estudos acerca da escravidão. Creio que essa seja uma abordagem que potencializa ainda mais suas pesquisas. Para além disso a temática é bastante pertinente. A historiografia da escravidão no Brasil ainda é uma Seara que cabe ser explorada por muitas pesquisas, especialmente no Piauí. Parabéns pelo texto e pela pesquisa.

    Jônatas Lincoln Rocha Franco
    (PPGHB-UFPI)

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  3. Ôlá, boa noite Professora Jéssica Gadelha!
    É importante ressaltar que os documentos existentes no estado do Piauí, são indícios da presença e da vigência da escravidão de negros africanos ou brasileiros no
    contexto colonial piauiense: dados demográficos; inventários; livro de notas; processos crimes;
    registro eclesiástico como livros de casamento, batismo e óbito; e testamentos. Nesse contexto
    Alcebíades Costa Filho em seu artigo intitulado “Fontes para a História da Escravidão negra no
    Piauí” (2014) aponta que é possível encontrar em onze municípios do Estado documentos
    escritos sobre a escravidão negra. Sete com cartório civil e eclesiástico (Amarante, Barras,
    Batalha, Campo Maior, Jaicós, Parnaíba e Teresina); três com apenas cartório eclesiástico
    (Floriano, José de Freitas e Luis Correia) e Oeiras apenas com cartório civil2
    . Portanto Campo
    Maior conta com recursos documentais para o estudo do tema. Os registros eclesiásticos
    localizados nas paróquias dos municípios listados anteriormente informam sobre “a população
    escrava e livre, constituem fontes privilegiadas para estudos de demografia histórica e saúde
    pública e até mesmo aspectos da vida privada” (COSTA FILHO, 2014, p.381).

    Marciel Rodrigues de Carvalho Andrade (UFPI)

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