“SERVIRÁ ESTE LIVRO PARA O REGISTRO DOS ÓBITOS DOS FILHOS DA MULHER ESCRAVA”: O REFLEXO DA LEI N° 2.040 DE 28 DE SETEMBRO DE 1871 NA VILA DE CAMPO MAIOR (1873-1883)
Jéssica Gadelha Morais
Mestra em
Arqueologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), Especialista em História
e Cultura Afro Brasileira. Graduada em Licenciatura Plena em História pela
Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Email: moraisjg07@gmail.com
Resumo: As inquietações
aqui trabalhadas se referem aos filhos da mulher escrava ou filhos do ventre
livre cujos registros de óbitos, localizados na Secretária da Paróquia da
Catedral de Santo Antônio em Campo Maior-PI, apontam como local de sepultamento
o cemitério Santo Antônio, em contrapartida nenhum indicio arqueológico desse
grupo foi encontrado no acervo funerário em questão. Dessa forma o objetivo é
analisar os registros eclesiásticos de óbitos de crianças após a Lei n° 2.040
de 28 de setembro de 1871 almejando identificar as experiências por elas
vividas. O recorte temporal coincide com o primeiro e o último registro
efetuado, respectivamente de 1873 a 1883. O percurso metodológico da elaboração
do trabalho contou com a pesquisa bibliográfica sobre a escravidão. Para ajudar
na identificação dos senhores da mulher escrava foram utilizadas as lápides do
cemitério Santo Antônio que esteve em atividade para
sepultamentos entre os séculos XIX e XX. O resultado aponta que foi em decorrência da
condição criada pela Lei que as crianças em questão puderam ser sepultadas na
referida necrópole ainda que com sepulturas temporárias. Dessa forma a ausência de vestígios materiais
do grupo social investigado no cemitério está ligada a rotatividade de
sepultamentos. Em relação às condições de vida a lei pouco refletiu na
amenização do cativeiro, e assim seguiram até a morte sendo propriedade de um
senhor, os mesmos donos de suas mães.
Palavras-
chave: Livro de
óbito. Mulher escrava. Filhos de mulheres escravas. Campo Maior- PI
A Lei n° 2040 de 28 de setembro de 1871 também
conhecida como Lei do Rio Branco ou Lei do Ventre Livre é um dos diversos
mecanismos elaborados para protelar o fim da escravidão. Essa lei declarava que
a partir dessa data as crianças de escravas que nascessem “não seguiria mais o
ventre” (CARDOSO; MOREIRA, 2015, p.82). Trata-se do surgimento de uma nova
figura social no interior da sociedade escravocrata, o ingênuo, que habita em
um limbo social, pois não tem a condição de livre nem de escravo. “Os filhos do
ventre escravo não teriam mais a condição social de suas mães, mas também não
teriam a possibilidade de ser livres” (CARDOSO; MOREIRA, 2015, p.92) até a
idade de 21 anos, à época essa idade considerada maioridade. A referida lei
limitava a liberdade das crianças, que se libertavam da escravidão, mas na
maioria das vezes seguiam sob a tutela estatal ou de particulares, esses por
sua vez podiam ser os próprios senhores de suas mães. No caso de haver
reivindicação da indenização por parte do senhor da mãe do filho que atingira
os 8 anos o Estado perdia dinheiro e ainda tinha que ter um local para
recepcioná-los, denominada por Maria Claudia
de Oliveira Martins e Renilda
Vicenzi (2013) de instituições asilares.
Em seu artigo 8° parágrafo cinco a lei estabelecia
que os párocos eram obrigados a ter livros especiais para os registros dos
nascimentos e óbitos das crianças nascidas
desde a data desta lei. O pároco que se omitisse pagaria uma multa de 100$000 (MOREIRA,
2013).
Atendendo
a esse disposto, em 31 de janeiro de 1872, o presidente da província do Piauí
Dr. Manoel do Rego Barros Sousa Leão rubricou os livros necessários para tais
registros, a fim de serem convenientemente distribuídos pelos párocos da província
(COSTA, 2010).
Livro de óbito destinados aos
filhos da mulher escrava na Vila Campo Maior
“Servirá este
livro para o registro dos óbitos dos
filhos da mulher escrava e corridas da data da lei nº 2040 de 28 de
setembro do anno passado.Palácio do Governo do Piauhy, 19 de janeiro de 1872”.
[***] Manoel do Rego Barros Leão.
O livro trás alguns aspectos que merecem ser evidenciados. O termo de abertura do livro data de 19 de janeiro
de 1872. Dessa data para o primeiro registro de óbito transcorre 1 ano e 3
meses, e do primeiro para o último se passaram mais 10 anos. Cada termo
menciona apenas o nome (pré-nome) da mãe, o nome do proprietário das mães das
crianças, e todos os registros apontam como local de sepultamento o Cemitério
da Irmandade Santo Antônio. No total, o livro possui 50 registros de óbito em
duplicatas, entre os quais 49 são descritos como filhos naturais e um (1) é
descrito como filho ilegítimo. Um desses 50 assentos o pároco menciona a cor da
pele da criança:
No dia quatro de setembro de mil oito centos
setenta e oito falleceu Icipião, pardo,
nascido a vinte nove de maio do dicto anno, filho natural de Theodora,
solteira, escrava de Jozeph Fernando Alves morador nesta Villa de Campo Maior:
seu cadáver foi sepultado no dia cinco do mesmo mez e anno no Cemitério da
Irmandade de Santo Antônio. E para constar faço este assento, que assigno.
Dessa colocação cabe se perguntar: Por que só o
registro de Icipião traz a descrição da cor da pele e os outros assentos de
óbito não? “Pardo” seria uma designação utilizada com
intuito de registrar uma diferenciação social, digo uma condição social e jurídica? O
Piauí ainda não possui um estudo especifico para essas tipificações de cor de
pele nos registros. Preto era sempre escravo, os demais não temos como afirmar.
Icipião, filho de Theodora, faleceu com 3 meses de idade. O senhor de sua mãe,
Jozeph Fernando Alves, era morador da Vila de Campo Maior o que deixa abertura
para inferir que o mesmo poderia ser natural de outra localidade da mesma
província ou até mesmo de outra província. Outro aspecto observado no registro
de óbito diz respeito às práticas do enterramento, sempre um dia após a data do
óbito. Durante esse intervalo de tempo é possível a realização de outras
práticas funerárias, ressaltando que o enterramento é apenas uma delas.
Barros, o vigário que assina os assentos, também era
proprietário de escravas, mães das crianças que tiveram vida curta. Logo não
era somente tenente coronel, coronéis, fazendeiros que possuía escravos, mais
ainda o homem religioso. Cardolina e Maria aparecem citadas como sendo escravas
da propriedade de Barros.
No dia onze de
julho de mil oito centos setenta e quatro faliceu da vida presente Paulo,
Nascido a dez de dezembro de mil oito centos setenta e dois, filho natural de
Cardolina, solteira, escrava do Padre Manoel Félix Cavalcante de Barros [...].
No dia quatorze
de agosto de mil oito centos setenta e quatro faliceu da vida presente Pedro,
nascido a dez de dezembro de mil oito centos setenta e dois, filho natural de
Cardolina, solteira, escrava do Padre Manoel Félix Cavalcante de Barros [...].
No dia desesseis
de novembro de mil oito centos e oitenta e três faleceu pelas onze horas da
noite Antonio, nascido a dez de maio do dicto anno, filho natural de Maria,
solteira, escrava do Padre Manoel Félix Cavalcante de Barros [...]
As duas
primeiras passagens trazem o mesmo nome de escrava, Cardolina. Era ela a mesma
pessoa? Digo a mesma escrava? Se sim é possível que Paulo e Pedro fossem
gêmeos. Ambos nasceram no mesmo dia, partilharam do mesmo ventre, no entanto a
morte ceifou primeiro a vida de Paulo vindo Pedro falecer um (1) mês depois.
Embora nos assentos não constem a causa da morte é possível refutar “o mal de
sete dias” mencionado por Falci(2004), já que na data do óbito a idade com que
faleceram (quase 2 anos) excede o número de dias pelo qual ficou conhecido o
mal (7 dias). Nos registros de óbito de Pedro e Paulo destaca-se ainda a
presença de uma crença em uma outra vida a partir do momento em que menciona
que ambos os meninos “faleceram da vida
presente” o que não inviabiliza a existência de outra vida. Outra observação é
a de que apesar dos registros possuírem a mesma estrutura algumas informações
estão presentes em uns e outras não como, por exemplo, a hora aproximada em que
veio a falecer Antonio filho de Maria, a outra escrava de Barros.
Antônia,
filha de Caetana escrava de propriedade de Olympia Cavalcante Barros essa
provavelmente irmã do referido padre Barros, em sua breve infância gozou de
pouco tempo de convivência com a mãe uma vez que essa é mencionada como já
falecida à época do registro de óbito da pequena. Em semelhante caso está a
pequena Joanaa que faleceu aos 14 meses e já não contava mais com a mãe
Raimunda escrava de Roberto Joze Muniz. Teria a mãe falecido em decorrência de parto?
É uma possibilidade. E Antônia e Joanna como viveram suas breves vidas sem suas
mães? Nascida em dezoito de fevereiro de mil oitocentos e setenta e sete e
falecida em dez de novembro do mesmo ano, sob que cuidados Antonia vingou até
quase seus 9 meses de vida? E Joanna seus 14 meses?
Estudos que
abordam estratégias tecidas por escravos para estabelecerem vínculos de
parentesco demonstram que três eram os caminhos possíveis: padrinhos escolhidos
entre membros da escravaria; da própria família de seu senhor ou pessoas livres
de outras famílias; ou ainda a escolha de um santo. de devoção. Ambas com a
ausência das mães tão prematuramente necessitaram de cuidados materiais,
físicos, logo se exclui o seu apadrinhamento por santo de devoção. Portanto as
madrinhas, elegidos entre os escravos ou de pessoas livres devem ter sido sua
cuidadoras. Débora Gonçalves Silva citando Falci (2012) diz que o
apadrinhamento ligado a espiritualidade não foi prática comum.
Em um dos
assentos de óbitos pesquisados o batizado é contemplado
No dia vinte um
de abril de mil oitocentos e setenta e trez , tendo nascido uma criança filha
natural de Teresa, solteira, escrava do Tenente Coronel Honório Jose Nunes Bona
foi baptisada em casa por necessidade com o nome de Manoel, e tendo falecido no
mesmo dia, foi sepultado no dia vinte dois no cemitério da Irmandade de santo
Antônio desta Villa de Campo Maior.
A efetivação do batismo estava ligado a duas
necessidades: a preocupação de cumprir os princípios cristãos; ou o interesse
de estabelecer laços de proteção e solidariedade através de compadrio. No
contexto da citação é possível que a necessidade ocorresse por conta da
percepção de uma morte iminente. Era necessário morrer cristão, e nesse
contexto por que não o apadrinhamento espiritual? O local da realização do
batismo também deve dizer algo. Entende-se casa como a propriedade do senhor ou
do escravo? Acredita-se que seja uma referência a casa do escravo, já que
conforme Melo (1983) havia uma quadra destinada para a residência dos mesmos,
“rua dos negros” (MELO, 1983, p.100)
A análise do livro em questão aponta para o Tenente
Coronel Honório José Nunes Bona[1]
como o proprietário com o maior número de escravos. O Tenente nasceu em
dezembro de 1823 casou-se com dona Maria Joaquina e com ela teve 5 (cinco)
filhos, dos quais apenas três (3) foram identificados: Antônio José Nunes
Bonna, José Nunes Bona e Isaú José Nunes Bona. A família Bona Primo é uma das
famílias naturais e tradicionais da cidade de Campo Maior. Dos 50 assentos 11 o
menciona como o proprietário das escravas.
Proprietário
|
Mulher escrava
|
Filho da
escrava
|
Nasceu em
|
Faleceu em
|
Idade
|
Tenente Coronel Honório José Nunes
Bona
|
Teresa
|
Manoel
|
21/04/1873
|
21/04/1873
|
Mesmo dia em nasceu
|
Florencia
|
Constancia
|
26/08/1872
|
18/01/1876
|
3 anos e 4 meses
|
|
Florencia
|
Elizia
|
24/05/1874
|
26/01/1876
|
1 ano e 8 meses
|
|
Teresa
|
Luiza
|
01/07/1875
|
30/01/1876
|
6 meses
|
|
Florencia
|
Manoel
|
|
01/02/1876 ( RN)
|
RN
|
|
Maria
|
Maria
|
|
19/05/1881( RN)
|
RN
|
|
Brígida
|
Jozé
|
02/05/1881
|
01/1882
|
8 meses
|
|
Teresa
|
Rosa
|
|
16/02/1883
|
4 anos
|
|
Teresa
|
Antonino
|
|
01/03/1883
|
7 anos
|
|
Teresa
|
Constancia
|
|
05/03/1883
|
3 anos
|
|
Joaquina
|
Jorge
|
|
15/03/1883
|
1 ano
|
Tabela
1: Escravas do Tenente Coronel Honorio J. Nunes
Bona
Fonte: Livro de óbito dos filhos da
mulher escrava
É provável que Teresa e Florencia, cada qual, fosse
uma pessoa só, a repetição dos nomes ocorre em virtude do número de filhos que
essas mulheres tinham e perdiam tão logo eles nasciam. Dessa forma o fato do
tenente aparecer onze vezes não indica que ele tinha onze escravas, mas somente
cinco (Teresa, Florencia, Maria, Brigida e Joaquina) ainda assim o maior número
encontrado.
Além do Tenente Coronel Honório José Nunes Bona e do
Manoel Felix Cavalcante de Barros outros proprietários de escravas foram
identificados. O senhor Joze Rodrigues de Miranda, o major Antonio da Costa
Araújo Filho e D. Ignes da Costa Araujo. As informações sobre Joze Rodrigues de
Miranda provem de sua laje tumular (435) e de seu registro de óbito. Segundo a
documentação escrita, o falecido era natural de Torem, Reino de Portugal, filho
de Domingos Rodrigues de Azevedo e Maria Rodrigues de Azevedo. Era residente em
Campo Maior e casado com D. Candida Rosa de Miranda. Ele faleceu de hidropesia
aos 64 anos. Um aspecto interessante em sua laje tumular refere-se ao termo “legítimo”
atribuído à esposa, mas não aos filhos, como apareceu em outras lápides. No
entanto, se a esposa era legítima, consequentemente os filhos também seriam.
Verifica-se ainda que mesmo sendo Luiz Rodrigues de Miranda casado, ele foi
sepultado junto de sua família de origem, ou seja, junto de seu pai e de sua
mãe, reconstituindo e atualizando simbolicamente sua casa, de identificação
comum e de permanência e reprodução post
mortem do grupo. Os filhos da mulher escrava não puderam reconstituir
simbolicamente sua família, ainda que desprovida de pai, era sua família sua
mãe e seus irmãos (MOTTA, 2012).
Dentre os
pequenos sepultados no Cemitério da Irmandade de Santo Antônio um (1) não era
da Freguesia, mas por aqui morreu e logo ficou registrado no referido livro.
Trata-se do caso de Francisca, filha de Luiza escrava de Francisco Lopes Frago.
No dia oito de
abril de mil oito centos setenta e nove falleceu Francisca, de seis annos de
idade, natural da Freguesia de Santa Quiteria da província do Ceará, e de
presente nesta Villa de Campo Maior, filha de Luiza, solteira, escrava de
Francisco Lopes Frago[...]
O que fazia Francisca nesta Villa de Campo Maior?
Com quem veio? De que faleceu? Essas são perguntas cujas respostas se perderam
com ela.
No que se refere às enfermidades que levavam a
sepultura, não conhecedores das doenças que matavam muitas vezes os padres
registravam um nome descritivo para a causa da morte. Reis (1991, p. 36) referindo-se aos livros de
óbito por ele consultado, comenta que a expressão moléstia interior “era usada
quando não se podiam associar os sintomas do moribundo a uma enfermidade
conhecida”. No livro pesquisado sete (7) morreram recém nascidos, cinco (5)
viveram somente alguns dias. E apenas 5 apontam as causas das mortes: em um (1)
registro de 1880 foi febre; e quatro (4) assentos de 1883 apontam a causa
bexigas.
Adentrando nas causas das mortes contempladas em
alguns assentos de óbito presente no livro constatamos o falecimento de
Joaquina:
No dia três de
maio de mil oito centos e oitenta falleceu de febres pelas quatro horas da
tarde Joaquina, nascida a vinte quatro de desembro de mil oitocentos setenta e
sete, filha natural de Francisca, solteira, escrava de Geraldo Francisco
Braga[...]
Joaquina tem sua causa da morte atribuída a febres.
Muitas são as causas que podem ocasionar febres, ou seja, ao certo não sabe o
que ceifou sua vida. Quanto às bexigas levaram a sepultura Constância de três
anos de idade (filha de Teresa escrava do Tenente Coronel Honório Jose Nunes
Bonna), Jorge de um ano de idade (filho natural de Joaquina escrava do Tenente
Coronel Honório Jose Nunes Bonna), Antonia de cinco anos de idade (filha de
Athanasia escrava de Antonio de Sousa) e Antonino de sete anos de idade ( filho
de Teresa escrava do Tenente Coronel Honório Jose Nunes Bonna )[...]bexigas”
era o nome popular como era, à época, conhecida a varíola. A varíola é causada
pelo vírus Orthopoxvirusvariolae. Ainda
permanece desconhecido o período em que o vírus pode permanecer ativo dentro do
corpo de um indivíduo por isso todas pessoas infectadas foram isoladas ou
incineradas para evitar a contaminação de outras pessoas(SMITH, 2013). Sua
transmissão pode ser de várias formas, mas a principal é por gotículas de
salivas expelidas por pessoas infectadas ao falar, tossir ou espirrar. Existe a
possibilidade de o vírus se espalhar pelo ar infectando as pessoas ao seu redor
ou por meio de roupas ou outros objetos contaminados. A intensificação mais
comum dos sintomas são: diarreias, vômitos, convulsões, delírios, pústulas
purulentas pelo corpo provocando dores e pruridos. As vesículas são as
características essenciais na identificação da doença, pois sua evolução
provoca ulceras na pele formando crostas de tecidos mortos (THEVES; BIAGINI;
CRUBEZY, 2014). A prevenção é a forma mais certa de evitar essa doença. No
século XIX o conhecimento que se tinha da mesma era limitado com o avanço da
medicina é que ela pôde ser melhor conhecida.
Retornando aos assentos de óbito verifica-se que a
maior expectativa de vida constatada foi a de 7 anos, dois(2) casos, e 5 anos,
com três (3) casos. Em alguns dos
assentos que data do ano de 1883[2] a
necrópole aparece mencionada como Cemitério provisório da Irmandade de Santo
Antônio. Ou seja, esses assentos de óbito ajudam a problematizar sobre o
funcionamento do sepulcrário. Por que o cemitério nesse ano é mencionado como
provisório? Seria isso já uma evidência de sua superlotação? Ou seria algo
relacionado à sua localização? Se o cemitério começou a funcionar, conforme se
supõe a partir da cultura material, em 1804, no ano de 1883 (época em que é
citado como provisório), ele já contava com 79 anos de atividade. No entanto,
funcionou até 1978 (data do último sepultamento). Portanto, de 1883 até 1978
foram 95 anos de uso estendido. Se em 1883 ele
já estivesse lotado, como se pressupõe, como teria funcionado por mais 95 anos?
Essa demora pode estar associada a alguma resistência da população? Ou na
demora da escolha de um novo endereço para os mortos?Infelizmente esses
questionamentos não puderam ser
respondidos. Faltam fontes para elucidar melhor essas questões (MORAIS,
2016).
Diante dos vestígios materiais e das fontes escritas
se acredita que quanto ao uso estendido do sepulcrario uma alternativa adotada
pode ter sido a rotatividade de sepulturas o que explica o silêncio da cultura
material quanto a presença dos filhos da mulher
escrava no cemitério Santo Antônio. Diante das características da doença
varíola essa rotatividade pode ter sido um risco a saúde pública, em virtude do
desconhecimento de até quando o vírus permanecia ativo no corpo do individuo.
O
livro de registro de óbito termina com várias páginas em branco, demonstrando
uma interrupção abrupta nos lançamentos. Não há o termo de encerramento como
previsto. Tal interrupção nos leva a crer que os registros de óbito dessas
crianças também se fizeram em meio ao dos escravos ou dos livres, portanto não
seguindo a determinação da lei n 2.040 de 28 de setembro de 1871 em fazê-lo em
livro específico.
Considerações finais
Os filhos da mulher escrava foram um dos sujeitos que
repousaram na necrópole denominada Cemitério (da Irmandade) Santo Antônio,
ainda que temporariamente. Eram crianças identificadas tão somente pelo
pré-nome, criadas por suas mães e que tiveram irmãos que não chegaram a
conhecer ou que desfrutaram de pouco tempo para compartilhar com eles o amor
fraternal. Pode-se dizer que o reflexo da lei na vida das crianças foi pouco já
que tal como suas mães continuaram ligadas a um senhor e, portanto viveram suas
breves vidas no âmbito da escravidão. Na morte a lei propiciou a eles um livro especial,
o que não os dava de fato uma definição, uma história ou até mesmo uma
identidade. O que não os tornava especial, mas marginalizados. A existência do
livro exigido por lei cumpria uma determinação legal e que a julgar pelas
páginas em branco não foram fielmente cumpridas. Dessa forma o fato dessas
crianças serem enterradas no espaço mortuário citado e de possuírem um registro
de óbito especificado para eles, permite dizer que os mesmos gozavam de uma
condição social diferenciada de suas mães, mas que livres eles não foram. A
análise dos assentos de óbitos permite afirmar que nenhum deles chegou a
completar a idade de 8 anos e conforme a Lei do Ventre livre até essa idade
eles eram responsabilidade dos senhores de suas mãe que deveriam criá-los e
tratá-los. A propósito diante das baixas expectativas de vida, da breve
infância dos pequenos fica o questionamento de tais cuidados recebidos por seus
senhores. Tudo isso só confirma o pensamento de Rui Barbosa que calculava que,
se fosse esperado os efeitos da lei, a escravidão só estaria extinta nos meados
do século XX (COSTA, 2007, p.337).
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decisivos. 8ª Ed.São Paulo: Fundação editora UNESP,2007. p.337.
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Pereira. Cronologia Histórica do Estado
do Piauí. 2° Ed.Teresina: APL; FUNDAC; DETRAN, 2010.
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Texto não publicado. Arquivo Público do Piauí. Sala de reservas relativas ao
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MORAIS,
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histórico do cemitério Santo Antônio em Campo Maior – Piauí (1804-1978).
Teresina, 2016. Dissertação (Arqueologia Histórica) - Universidade Federal do
Piauí, 2016.
MOREIRA, Paulo
Roberto Staudt. Ingênuas mortes negras: doenças e óbitos dos filhos do ventre
livre (Porto Alegre RS-1871/1888). Revista
territórios & Fronteiras. vol.6, n.2, Cuiabá ,jul/dez, 2013.
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oitocentistas. In: TRAJANO FILHO, Wilson (Org.). Lugares, pessoas e grupos: as lógicas
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THEVES, C.; BIAGINI, P.; CRUBEZY, E. The
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Fontes:
Lápide 47 do
Cemitério (da Irmandade) de Santo Antônio
Lápide 435(1982-1908-1948)
do Cemitério (da Irmandade) de Santo Antônio
Livro de óbito dos filhos da mulher escrava.
[1] Lápide 47
[2] . De acordo com os assentos de
óbito de Rosa ( filha natural de Teresa), Antonino (filho natural de Teresa),
Constância (filha natural de Teresa) e Jorge (filho natural de Joaquina)
encontrados no Livro de óbito dos filhos da mulher escrava da Freguesia de
Campo Maior (1873 a 1883) já em 1883 o cemitério aparece mencionado como
provisório, embora não cite as causas.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOlá gostei da abordagem do artigo, a Lei do Ventre-Livre, promulgada em 1871 era apenas mais uma "lei para inglês ver". Com o decorrer da leitura percebemos que não há uma mudança significativa na vida dessas crianças que nasceram depois da lei, elas continuavam vivendo como escravas, pois ou conviviam com a mãe ou eram tuteladas pelo senhor da fazenda onde suas mães eram escravas. Infelizmente não me lembro a obra mas tem um trabalho que fala sobre como a lei do ventre livre separou as mães dessas crianças, com a libertação dos escravos em 1888 essas mães foram atras dos filhos que estavam na tutela dos senhores, mas elas não tinham como provar que eram mães dessas crianças e como eles ainda eram crianças ou adolescentes continuaram a serem tutelados pelos senhores.
ResponderExcluirCAROLINE PINHEIRO DE OLIVEIRA
Boa noite! Essa lei só foi mais uma das leis que tentaram protelar o fim da escravidão. Fiquei interessada na obra que você cita, porém não recorda o nome. Caso lembre por favor compartilhe.
ExcluirJessica Gadelha Morais. UFPI/UESPI.
Olá Jéssica. Gostaria de agradecer sua participação em nosso evento, especialmente no nosso St. Muito me interessou seu texto e sua pesquisa. Muito bem escrito e uma pesquisa de bastante fôlego. Destaco essa relação entre história e arqueologia nos estudos acerca da escravidão. Creio que essa seja uma abordagem que potencializa ainda mais suas pesquisas. Para além disso a temática é bastante pertinente. A historiografia da escravidão no Brasil ainda é uma Seara que cabe ser explorada por muitas pesquisas, especialmente no Piauí. Parabéns pelo texto e pela pesquisa.
ResponderExcluirJônatas Lincoln Rocha Franco
(PPGHB-UFPI)
Ôlá, boa noite Professora Jéssica Gadelha!
ResponderExcluirÉ importante ressaltar que os documentos existentes no estado do Piauí, são indícios da presença e da vigência da escravidão de negros africanos ou brasileiros no
contexto colonial piauiense: dados demográficos; inventários; livro de notas; processos crimes;
registro eclesiástico como livros de casamento, batismo e óbito; e testamentos. Nesse contexto
Alcebíades Costa Filho em seu artigo intitulado “Fontes para a História da Escravidão negra no
Piauí” (2014) aponta que é possível encontrar em onze municípios do Estado documentos
escritos sobre a escravidão negra. Sete com cartório civil e eclesiástico (Amarante, Barras,
Batalha, Campo Maior, Jaicós, Parnaíba e Teresina); três com apenas cartório eclesiástico
(Floriano, José de Freitas e Luis Correia) e Oeiras apenas com cartório civil2
. Portanto Campo
Maior conta com recursos documentais para o estudo do tema. Os registros eclesiásticos
localizados nas paróquias dos municípios listados anteriormente informam sobre “a população
escrava e livre, constituem fontes privilegiadas para estudos de demografia histórica e saúde
pública e até mesmo aspectos da vida privada” (COSTA FILHO, 2014, p.381).
Marciel Rodrigues de Carvalho Andrade (UFPI)
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