A DEMONIZAÇÃO DE UMA RAINHA: ANA BOLENA (1501-1536) E SUAS REPRESENTAÇÕES COMO BRUXA NA HISTÓRIA E NA LITERATURA
Marcos de Araújo Oliveira
Graduando em
Licenciatura em História na Universidade de Pernambuco – UPE (Campus
Petrolina). É integrante do Spatio Serti – Grupo de Estudos e Pesquisa
em Medievalística da UPE/Petrolina. Orientador: Prof. Dr. Luciano José Vianna
(UPE/Petrolina).
E-mail:drmarcosaroeira@hotmail.com
Resumo: Durante todo o período que Ana Bolena (1501-1536) vivera um romance com
Henrique VIII (1491-1547) da Inglaterra, ela foi bastante depreciada pela corte
e pela Igreja, pois ia contra os padrões de comportamento feminino aceitáveis
para sua época. O estigma de concubina recaía sobre Ana, mas seu nome também
esteve vinculado a feitiçaria, pactos com o diabo e sortilégios. Encontramos,
assim, alguns desses aspectos reverberantes de uma “Lenda Negra” de Ana Bolena
na obra literária Lasher (1996) de Anne Rice. Este trabalho analisa o
processo de demonização de Ana Bolena e os aspectos utilizados por Rice na
construção de sua narrativa atribuindo a Ana Bolena características de uma bruxa.
Vemos que através das metaficções historiográficas, que segundo Hutcheon (1991)
são narrativas ficcionais que se apropriam das verdades e mentiras do registro
histórico, a literatura contemporânea ao retratar Ana, expõe reflexos do
próprio imaginário inglês do século XVI.
Palavras-chave: Ana Bolena, Lenda Negra, Demonização, Bruxaria, Literatura.
Introdução
Ana Bolena ficou
conhecida como a segunda plebeia a ascender ao trono da Inglaterra. Coroada em
maio de 1533, a jovem extremamente inteligente e audaciosa conseguira fazer com
que o rei Henrique VIII (1491-1547), da dinastia Tudor, rompesse seu casamento
com a princesa espanhola Catarina de Aragão (1485-1536) para casar-se com ela.
Ana Bolena, todavia,
nunca foi bem aceita por seus contemporâneos, havendo inclusive na corte a
“facção anti-bolena” que torcia pela queda da nova rainha. Esta mulher tão
polêmica acabou por receber entre várias tentativas de depreciação de sua
imagem o “adjetivo” de bruxa, despertando assim o desprezo de vários membros da
corte. Entretanto, com o surgimento de novos estudos sobre a condição feminina
da mulher medieval, a visão sobre Ana Bolena e suas contribuições históricas foi
modificada, problematizando os vários estigmas difundidos historicamente acerca
desta mulher.
Ainda assim,
nota-se que em narrativas literárias a representação de Ana Bolena ainda é
vinculada ao mundo da bruxaria, como no livro Lasher (1996) de Anne Rice,
que ao apropriar-se da figura de Ana Bolena enquanto uma bruxa poderosa,
mostra-se como uma extensão da “Lenda Negra” difundida no século XVI que
atribuiu a ideia de Ana como bruxa, sendo válido, assim, debater e
problematizar esses tipos de discursos acerca de Ana Bolena.
Ao se adotar uma
metodologia na análise de uma fonte literária, é preciso destacar que o romance
histórico, apesar de se apropriar da personagem Ana e de fatos históricos, é
uma narrativa ficcional diferente das outras. Segundo Hutcheon (1991) esse tipo
de narrativa é denominada como metaficção historiográfica, e destaca-se por
unir literatura com história
Uma Rainha odiada
Ana Bolena era
dama de companhia da Rainha Catarina, mas segundo Fraser (2014) estima-se que
em meados de 1527-1528, a filha de Thomas Bolena e Elizabeth Howard teria
chamado a atenção de Henrique VIII, cada vez mais insatisfeito com seu
casamento e a ausência de um herdeiro homem, já que Catarina tinha tido uma
série de gestações com abortos ou filhos mortos, sobrevivendo saudavelmente
apenas Maria Tudor (1516-1558).
Ana, que
passara sua juventude toda no Reino da França, sendo dama de companhia da
rainha Cláudia, esposa de Francisco I, tornou-se uma mulher extremamente culta.
Ela sabia interpretar, dançar e cantar muito bem, possuindo uma personalidade
muito forte. Entretanto, Ana não contentara-se apenas em ser amante do monarca
Tudor. Vendo na jovem a esperança de obter o herdeiro do trono inglês, Henrique
VIII passou a buscar perante a Igreja a anulação de seu casamento com Catarina
de Aragão, alegando que como a mesma foi a viúva de seu irmão, Artur Tudor
(1486-1502), seu casamento fora amaldiçoado por Deus. O Papa Clemente VII (1523-1534)
negou o pedido de Henrique várias vezes.
Ana
Bolena, entretanto, já era uma admiradora das ideias reformadoras que atingiam
a Europa no século XVI; costumava ler obras muitas vezes compreendidas como
heréticas, sendo ela uma das principais influências para que Henrique lesse
obras protestantes.
A Londres daquele período – aquela
cidade tão pronta a incendiar-se com rumores de mudança na corte – era um foco
de “evangélicos” ou pretensos reformadores religiosos. O desgosto deles para
com as práticas do Clero da época concentrava-se em questões tão diversas
quanto a falta de um celibato de verdade [...] e a prática de vender missas e
orações pelos mortos. [...] a importação de textos e livros do exterior era um
bom negócio. [...] Há várias histórias sobre Ana Bolena mostrando ao rei obras
anticlericais ou possivelmente hereges. (FRASER, 2014, p.195-196)
A
autora Antônia Fraser (2014) aponta em Ana uma tendência às ideias
reformadoras, e reafirma assim que Ana Bolena usou de suas prerrogativas
femininas perante o rei, intercedendo pelos reformadores. Sem aguentar esperar
mais, o monarca casou-se em segredo com Ana Bolena em janeiro de 1533 e em 1534
rompeu de vez com a Igreja Católica.
Com a
aprovação do Ato de Supremacia, Henrique tornou-se chefe da Igreja na
Inglaterra, beneficiando o rei com todos os bens e recursos eclesiásticos.
Porém, sem mudanças teológicas nascia assim o Anglicanismo, consequência
principal do relacionamento de Henrique VIII com Ana Bolena, um dos maiores
marcos políticos, religiosos e culturais na Inglaterra do século XVI. (ANDRADE,
2013)
No dia 07 de
setembro de 1533, Ana Bolena dera à luz não ao filho homem tão sonhado por
Henrique VIII, mas sim a uma menina nomeada Elizabeth[1].
Ana continuou tentando gerar o herdeiro homem para Henrique, porém, sofreu dois
abortos. O último deles, em janeiro de 1536, supostamente fora o de um feto
masculino, no mesmo mês em que morria também Catarina de Aragão, banida e
solitária no castelo de Kimbolton.
Como aponta Tapioca Neto (2013) Ana, que em
1534 adotara como seu lema de rainha “The most happi” (A mais feliz), passava
agora a enfrentar a ira do rei, que se sentia mais uma vez amaldiçoado em um
casamento. A “mais
feliz das mulheres” começou a ter sua queda arquitetada pelo próprio marido,
que, receoso em enfrentar mais um processo de divórcio, resolvera livrar-se dela
de um modo mais rápido e decisivo.
[,,,] sem ter conseguido dar à
luz ao menino almejado pelo rei, Anne tornou-se vulnerável as intrigas de seus
opositores. Assim, foi acusada de tê-lo seduzido através de bruxaria, de tramar
a morte do rei, da princesa Mary e do Duque de Richmond, de ter cometido
incesto com seu irmão George Boleyn, e adultério com outros cinco homens: Henry Norris, Francis Weston, Willian
Brereton, Marc Smeaton (O único que não fazia parte da nobreza e que sob
tortura, confessou as acusações recebidas) e Sir. Thomas Wyatt (o poeta, o
único que não foi levado a julgamento e que recebeu a liberdade). Julgada e
condenada a morte pelas acusações recebidas, Anne Boleyn foi decapitada na
Torre de Londres no dia 19 de maio de 1536. [...] Com aquela terrível
condenação, a memória de Anne Boleyn foi irremissivelmente manchada com as
máculas do incesto, bruxaria e adultério. (ANDRADE, 2013, p. 92-93)
Ana, coroada rainha em 23 de maio de
1533, reinou por mil dias, mudando para sempre o curso da corte, religião e
política na Inglaterra. A espada de um carrasco francês silenciou a sua
derradeira oração nos seus últimos instantes de vida, sendo o seu corpo selado
em um sepulcro na capela de Saint Peter.
A condição da mulher
medieval e a demonização de Ana Bolena
Foi a partir
das conquistas do movimento feminista
entre as décadas de 60 e 70 que houve a emergência dos estudos do campo
da História das Mulheres (SCOTT, 1992), proporcionando uma nova abordagem sobre
as figuras femininas no Medievo (KLAPISCH-ZUBER, 1992), sendo possível visualizar
uma expansão nas pesquisas acadêmicas acerca do papel de Ana Bolena, antes tão
demonizada pelos estigmas de “concubina”, “inimiga da cristandade”, “adúltera”
e possível “bruxa” , destacando-se no Brasil, as pesquisas de autores como
Flávia Adriana Andrade (2013) e Renato Drummond Tapioca Neto (2013).
É preciso destacar, assim, que as
relações de gênero no século XVI na Inglaterra eram marcadas por uma intensa
desigualdade entre homens e mulheres. Segundo Klapisch-Zuber (1992), qualquer
sociedade define culturalmente o gênero, dividindo socialmente os sexos e
atribuindo-lhes papéis determinados. Dessa forma, machos e fêmeas assumem então
a “condição” de homens e mulheres.
Nessa perspectiva, e face à
construção simétrica dos papéis masculinos, os papéis atribuídos às mulheres
são lhes impostos ou concedidos não em função das suas qualidades inatas –
maternidade, menor força física, etc –, mas por razões erigidas em sistema
ideológico; menos pela sua natureza do que pela sua suposta incapacidade de
entrar na cultura (KLAPISCH-ZUBER, 1992, p. 12).
Klapisch-Zuber (1992) aponta também que
a maioria dos registros sobre as mulheres medievais partem de homens ligados ao
contexto religioso. Esta visão cristã condicionava a figura da mulher como
alguém a ser virtuosa, tal qual a Virgem Maria, evitando uma conduta pecadora e
consequentemente abominando figuras que fossem em oposição a este padrão de
comportamento como no caso de Ana Bolena.
Segundo a concepção cristã do
século XVI, a mulher deveria viver para o marido e a família, prezando por um
comportamento que refletisse o recato e a virtude. Aquelas que fugissem a esse
padrão eram logo vistas com desconfiança pela sociedade e ao mínimo deslize,
seriam taxadas por uma série de apelidos, entre os quais o de bruxa. (TAPIOCA
NETO, 2013, p. 43)
Por ter feito um rei romper com a sua
esposa – e pior, com o Papa –, Ana obteve uma visão muito depreciativa de seus
contemporâneos, mais forte após sua decapitação diante de tantas acusações polêmicas.
Entretanto, ela não foi acusada formalmente em seu julgamento como bruxa, o
boato que cresceu apontando a mesma como uma mulher ligada a feitiçaria nasceu
na corte por meio das pessoas que não gostavam de Ana enquanto rainha e foram
alimentados pelo próprio rei Henrique VIII.
Muito mais tarde diriam que o rei
justificou isto tudo fazendo uma referência a feitiçaria: ele tinha sido
enfeitiçado por Ana Bolena, isto não era literalmente verdade. Ela não era uma
feiticeira – fosse lá o que línguas maliciosas pretendessem –, não fez feitiços
nem criou poção alguma com a ajuda do diabo, “o Inimigo da Humanidade” para
conquistar o amor do rei. Mas em outro sentido, Henrique VIII foi enfeitiçado:
não apenas pela juventude, pela graça e vivacidade de Ana, mas pela promessa
que ela oferecia de um casamento fértil (com filhos homens para sucedê-lo –
como Francisco I e Carlos V, de algum modo ele tinha sido privado disso.
(FRASER, 2014, p. 185).
Toda esta
crescente depreciação de Ana Bolena vinculando a sua imagem à de uma bruxa só
fez com que a rainha fosse ainda mais odiada, o que justificou muito da má
aceitação para com ela. Nota-se, com isso, que a ascensão de Ana na corte e o
fato da mesma ser mulher, e ainda ter sido amante do monarca Tudor, acaba influenciando
para a cristalização de preconceitos acerca da mesma.
Segundo
Tomazelli (2015), a misoginia medieval, herança da Antiguidade Clássica e dos
escritos dos Padres da Igreja, reforçou a concepção da mulher como meio para o
pecado e perdição. Vista como maligna, a mulher podia ser instrumento do Diabo,
o que despertava uma certa repreensão em relação a mulher, pois temia-se sua
sexualidade. Dessa forma, os discursos religiosos difundidos a partir do século
XIII, além de disseminarem o pânico em relação ao demônio, consolidaram o
arquétipo das malévolas bruxas, tidas como suas aliadas.
Sendo assim, Tomazelli (2015) esclarece
que, a passagem do final do medievo para o princípio da modernidade faz nascer
a bruxaria demonizada, tendo sua origem em três fatores principais: na
elaboração clerical da demonologia, na diabolização da mulher e no temor ao fim
dos tempos.
Com a inimizade do Vaticano, a
vilanização somou-se a demonização. Os católicos, passaram a criar inúmeras
ficções, vinculando Anne, a herege protestante, ao demônio, atribuindo a ela
características físicas monstruosas, extremas crueldade e práticas de
bruxarias. Os processos de vilanização e demonização da personagem foram
acentuados com base nas acusações do processo que a levou a morte, incesto,
bruxaria, adultério, ninfomania e assassinato. Some-se a tudo isso que o
casamento de Ana fora declarado nulo e ela recebeu oficialmente o status de
concubina do Henry VIII. (ANDRADE, 2013, p.19)
Logo aspectos apontados
como diabólicos ou pecaminosos foram difundidos a respeito de Ana, trazendo
para esta mulher o pecado e a vilania de uma bruxa. Ainda de acordo com Andrade
(2013), todos estes aspectos negativos atrelados a figura de Ana Bolena
serviram para alimentar uma espécie de “Lenda Negra” acerca dessa importante
figura histórica. Esta difusão de ideias obscuras sobre Ana impulsionou a
“Licença Poética” de Anne Rice para a escrita de seu romance Lasher (1996),
personificando a rainha como uma bruxa.
A
“Lenda Negra” de Ana Bolena presente em Lasher
(1996) de Anne Rice
De acordo com
Andrade (2013), muito do imaginário negativo que se criou a respeito de Ana
Bolena foi difundido por Nicholas Sanders, católico opositor ao governo de
Elizabeth I, nascido em torno de 1530 e que provavelmente nunca tivera contato
com Ana Bolena. É Nicholas Sanders que faz a descrição mais horripilante a
respeito de Ana, afirmando que a mesma possuía “um dente projetado para frente
sob o lábio inferior, uma verruga no queixo e seis dedos na mão direita”
(ANDRADE, 2013, p.153).
Segundo
Andrade (2013), foi Nicholas Sanders que criou a história de que na última
tentativa de gerar o herdeiro homem para Henrique, Ana Bolena teve um aborto na
qual o feto seria do sexo masculino e estaria todo deformado. Sendo assim,
Sanders claramente atribuía a Ana Bolena uma representação monstruosa.
Atualmente, vemos que várias produções cinematográficas ou até literárias perpetuam
essa “Lenda Negra” a respeito de Ana Bolena que influencia no imaginário
contemporâneo, vendo-a como bruxa, como na cena do filme Harry Potter e a Pedra Filosofal (2001) – onde um retrato de Ana
Bolena é exposto na galeria da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, considerando-a
uma bruxa importante.
Mas, no campo
da Literatura, essa ideia de Ana Bolena como bruxa também foi reproduzida, pois
vemos que Ana Bolena também é retratada como bruxa na obra Lasher (1996) terceiro livro da série As Vidas dos Bruxos
Mayfair, publicado no Brasil pela Editora Rocco. A obra é escrita pela
norte-americana Anne Rice, autora de séries de terror e fantasia sobrenatural, considerada
uma das autoras mais aclamadas e lidas da América.
Lasher (1996) conta em seu
enredo central a história de uma entidade sobrenatural chamado Lasher, sendo um
ser cuja natureza mística é extremamente enigmática e obscura, com a missão de
acompanhar por gerações as bruxas da família Malfoy. Lasher na verdade é filho
de um homem chamado Douglas de Donnelaith (morador de uma aldeia fictícia
chamada Donnelaith). Douglas é um personagem fictício, pertencente a um clã de
Donnelaith cuja genética permite que os seus membros, ao manterem relações
sexuais com bruxas, originem seres adultos extremamente fantásticos, de uma
raça diferente dos humanos e bruxos, chamados de Taltos.
Segundo o romance de Anne Rice, Lasher
teria sido o feto deformado que Ana Bolena teria abortado em 1536, o que
demonstra que essa “Lenda Negra” acerca de Ana Bolena inspirou Anne Rice a
descrevê-la como uma mulher adúltera, já que a mesma manteve relações
extraconjugais com Douglas de Donnelaith (por mais que seja um personagem
fictício), e também como bruxa, já que Ana geraria um monstro. Em uma passagem
do livro, vemos Lasher descrever seu nascimento, o que só reforça a ideia da
obscuridade de Ana.
Eu
sabia quem ela era, que eu estivera dentro dela, e sabia que ela corria perigo
de vida. Que, quando se revelasse minha monstruosidade, ela seria
indubitavelmente chamada de bruxa e condenada à morte. Ela era uma rainha. E as
rainhas não podem parir monstros. Que o rei não havia posto os olhos em mim,
que as mulheres o estavam mantendo afastado dos aposentos, isso eu também
sabia. As mulheres sentiam tanto medo de mim quanto minha mãe. [...] Minha mãe
chorava sem parar e não queria me tocar. Ela falava em inglês e dizia que Deus
a amaldiçoara pelo que havia feito, Deus amaldiçoara a ela e ao rei. E agora
seus sonhos estavam destruídos. Eu era o castigo vindo dos céus: minha
deformidade, meu tamanho, o fato óbvio de eu ser um monstro. De eu não poder
ser um ser humano. (RICE, 1996. p.446)
O momento em que
o passado de Lasher vem à tona, se passa no reinado de Elizabeth I,
quando a mesma é coroada em 1559. A narrativa literária de Rice explora e
reproduz aspectos de um imaginário depreciativo acerca de Ana Bolena, como o
fato dela ter seis dedos, por exemplo. “Minha mãe levantou-se e me encarou em
meio às lágrimas. Ergueu a mão esquerda. Vi ali a marca da bruxa, o sexto dedo.
Eu soube que voltara por meio dela por ser ela uma bruxa poderosa, embora
inocente como todas as mães” (RICE, 1996, p. 446).
De acordo com
Tapioca Neto (2013), algumas deformidades físicas em Ana só endossariam ainda
mais o argumento de que ela valeu-se de sortilégios para conquistar o rei. Uma
vez que Henrique se casara com Ana Bolena na esperança de que ela pudesse lhe
dar um filho saudável e como ela não cumprira esse desejo, “então as pessoas
acusaram o aborto da rainha como resultado de possíveis práticas de bruxaria e,
portanto, se fazia necessário que o rei arrumasse uma nova esposa o mais rápido
possível” (TAPIOCA NETO, 2013, p. 35).
Ao avançar do enredo no livro, Lasher é
confrontado por Emaleth, filha de Douglas e, portanto, sua irmã bruxa, sobre
ser filho de Ana Bolena, e sente-se acuado pois este segredo ficara guardado
durante muito tempo, já que logo que nasceu Lasher teve que partir com o seu
pai e não teve maior contato com sua mãe, condenada e morta tempos depois.
-Não
sei o que você está dizendo, não compreendo. Minha mãe era uma grande rainha.
Nunca soube seu nome. - Gaguejei ao dizer isso porque há muito eu já havia adivinhado
quem ela poderia ter sido, e era tolice minha fingir que não sabia. [...]
-Era
a Bolena - disse a mulher, Emaleth, minha irmã. - A rainha Ana foi sua mãe e
foi condenada à morte por feitiçaria e por gerar monstros.
Abanei
a cabeça. Eu via apenas aquela pobre mulher assustada, pedindo aos berros que
me levassem dali. - Bolena - sussurrei. E me ocorreram todas as velhas
histórias dos mártires daquela época: os cartuxos e todos os padres que se
recusaram a legitimar o perverso casamento do rei com a Bolena. Minha irmã
prosseguiu, ao ver que eu não a contradizia, nem falava nada
-
E a rainha da Inglaterra que está agora no trono é sua irmã - disse ela - E tem
tanto medo do sangue da mãe que gera monstros que não permite que homem nenhum
toque nela e nunca irá se casar! (RICE, 1996, p. 490)
Neste trecho do livro, Anne Rice
utiliza-se da sua “liberdade criativa” para justificar a condenação de Ana
Bolena que foi arquitetada por Henrique VIII por considera-la uma bruxa; e
também o fato de Elizabeth I nunca ter se casado, por ter medo da sua
descendência ser monstruosa tal qual igual sua mãe, o que até onde se sabe pela
historiografia – a exemplo de Antonia Fraser (2014) que nega que Ana tenha sido
bruxa-, isto não é verídico.
As palavras me atingiram como
tudo: música, beleza, assombro ou medo. Eu sabia. Eu compreendia. Bastava que
eu me detivesse por um instante de verdade na velha história. A rainha Ana,
acusada de encantar Sua Majestade e de par uma criança deformada no leito real.
Henrique, ansioso por provar que não era o pai, acusou-a de adultério e mandou
que cinco homens de reconhecida perversidade e falta de moral preparassem o
terreno para que ela fosse decapitada. (RICE, 1996, p. 490)
Entretanto, Tapioca Neto (2013)
argumenta que todas essas acusações de bruxaria não passavam de conspirações contra
Ana por conta de sua personalidade forte e por ter conquistado o Rei. Para o
historiador, uma mulher com as características de Ana Bolena constituía-se num
prato cheio para aqueles que queriam acusá-la de bruxa e de manter relações com
o diabo.
Considerações finais
Ainda que não
houvesse qualquer prova ou registro de que Ana Bolena fosse realmente uma
feiticeira como seus caluniadores apontaram, ela acabou pagando um preço alto
por ser mulher e por despertar a paixão de Henrique VIII. Ter influenciado na reforma
religiosa serviu ainda mais para toda a construção da demonização da sua
imagem, o que perdura até hoje, seja em obras literárias ou até
cinematográficas.
A obra Lasher (1996) da americana Anne Rice,
ao representar a personagem Ana Bolena como uma bruxa que enfeitiçou o rei e
gerou monstros, apropria-se assim do imaginário que perpetua a “Lenda Negra”
acerca desta rainha, vilanizando esta figura histórica como adúltera, bruxa e
pecadora. Entretanto, a narrativa ficcional não possui compromisso algum com a
verdade, podendo-se, assim como a própria História, tecer suas próprias interpretações
e dar versões acerca dos fatos e sujeitos históricos.
Referências
Fontes
FRASER,
Antonia. Ana Bolena. In:______. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Rio
de Janeiro: BestBolso, 2014. p. 150-300.
RICE,
Anne. Lasher: As Vidas dos Bruxos Mayfair – Livro 3. Tradução de Waldéa
Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. 576 p.
Bibliografia
ANDRADE,
Flávia Adriana. Ficções de Anna Bolena, na história e na literatura
contemporâneas. 2013. 390 f. Tese (Doutorado) – Instituto de Letras.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
HUTCHEON,
Linda. Poética do pós-modernismo: História, Teoria, Ficção. Trad.
Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. 331 p
KLAPISCH-ZUBER,
Christiane. Introdução. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle (Orgs). História das
mulheres no ocidente:
A idade média. Porto: Afrontamento, 1992. p. 9-23.
SCOTT,
Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História.
São Paulo: Unesp, 1992. p. 63-95.
TAPIOCA
NETO, R. D. A condição da mulher na
Inglaterra do século XVI: O discurso
feminista em The Secret Diary of Anne Boleyn (1997). Monografia de conclusão de
curso (História) – Universidade Estadual de Santa Cruz. Ilhéus, 2013. 62 p.
TOMAZELLI,
Roni. Para onde foram as bruxas? Os estudos históricos sobre a bruxaria tardo
medieval. In: V Encontro Internacional de História UFES/ Paris-Est. 5., 2015, Vitória.
Anais eletrônicos...Vitória: LHPL, 2015, p.940-949. Disponível em:
http://periodicos.ufes.br/UFESUPEM/article/view/12355/8634 >. Acesso
em: 05 de jul. 2019.
[1] Mesmo sendo mulher, Elizabeth
assumiu o trono e ficou conhecida como a “Rainha Virgem”, por não casar-se com
nenhum homem. Seu reinado ocorreu entre 1558 e 1603, e é lembrado como a “Era
de Ouro” inglesa.
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ResponderExcluirTexto interessante. Eu gostaria de saber se - mesmo sendo mais culta, sabendo interpretar, dançar, cantar, tendo acesso a certa literatura da época, e possuindo outros modos de comportamento, mais requintados, em consequência de suas experiências nos ambientes reais, seja francês ou inglês -, se Bolena também foi taxada com todos aqueles más esteriótipos pelo fato de justamente ter esses conhecimentos - que à época poderiam ser considerado impróprios para mulheres - e utilizá-los ñ apenas para ascender ao trono, mas também como, digamos, estratégias em um certo grau de possibilidades de liberdade e defesa, na medida do possível, mínimo que seja, dos plebeus da opressão.
ResponderExcluirRafael Souza Ferreira
Olá Rafael!Obrigado pela pergunta!
ExcluirSobre Ana Bolena, é possivel apontar que a mesma foi criada por seu pai Thomas Bolena para ser uma mulher em ascensão.
Ana desde a infância sempre mostrou-se um prodígio, isso levou ao seu sucesso como dama de companhia na França e posteriormente a sua ascensão como rainha na Inglaterra.
Sobre as suas estratégias para um grau de liberdade e defesa, também acredito que a mesma usou toda a sua inteligência para desistir seu destino. Tapioca Neto (2013) e Antônia Fraser (2014) são unânimes em apontar que Ana nunca foi uma mulher que se encaixasse em padrões e talvez por isso ela não se contentava em ser submissa a um homem e ficar presa ao lar, e o fato de ser plebeia nunca a impediu de dialogar e participar como uma igual na corte Tudor.
Pode-se pensar que o poder é tentador tanto para nobres como para plebeus, Ana Bolena não fugiu a essa regra, tanto é que não mediu esforços para ocupar o cargo de Rainha, o que levou anos de espera e até mesmo uma reforma religiosa, e ao assumir o trono sempre foi uma figura marcante ao lado de Henrique, mostrando que mesmo sendo plebeia, a mesma tinha competência para tal posto real.
Marcos de Araújo Oliveira
Muito bom o trabalho sobre a história de vida de Anna Bolena. Senti apenas que algumas de suas palavras-chave não estavam tão presentes no texto, como por exemplo a palavra "lenda negra". Como sugestão de leitura (pode ser que ajude), indico a obra "O fio e os rastros" de Carlo Ginzburg em que o historiador italiano faz uma ponte entre a ficção e a história. Seria legal também trabalhar o conceito de demonização (como tá no título do trabalho). A Laura de Melo tem um trabalho que pode servir com relação a isso, que se chama "Inferno Atlântico: demonologia e colonização, séculos XVI-XVIII.
ResponderExcluirDavi Benvindo de Oliveira
Davi Benvindo de Oliveira
Oi Davi!
ExcluirA Lenda Negra a respeito de Ana Bolena foi difundida por seus opositores, como expus em meu texto.
É uma perspectiva muito abordada tambet por Andrade (2013).
Obrigado pelas dicas bibliográficas!
Marcos de Araújo Oliveira-UPE
Parabéns pelo trabalho. É preciso romper com esse imaginário em volta da figura de Ana Bolena. Trabalho como o seu é de grande relevância e contribuem significativamente.
ResponderExcluirVanessa Cristina da Silva Sampaio - Universidade Federal do Amazonas - UFAM.
Olá Vanessa! Muito obrigado por ter lido o texto.
ExcluirAcredito que precisamos sim romper enquanto historiadores com esses discursos depreciativos que se referem a grandes figuras femininas, valorizando as suas contribuições historicas.
Marcos de Araújo Oliveira - UPE
Oi, Marcos! Parabéns pelo trabalho, me encantou demais. Gosto muito da história da Ana Bolena, a vejo como uma personagem muito forte e de grande influência na história. Uma pena que, como você trabalhou no seu texto, ela seja tão estigmatizada e taxada como a vilã de toda a história, vejo muitas semelhanças do que aconteceu com ela no que aconteceu também com outras mulheres que se envolveram com membros da família real inglesa como a Wallis Simpson e a própria princesa Diana, claro que o fim dessas duas últimas não foi tão cruel como o de Bolena, mas elas também foram responsabilizadas por tudo, sem dividir a culpa com a parte masculina da história. E isso é algo que precisa ser revisto, como você fez no seu texto. Parabéns!
ResponderExcluirCamila Rafaela Pereira de Souza (UFRN)
Obrigado Camila!
ExcluirSuas considerações são motivadoras!
Creio que as contribuições de Ana devem ser evidenciadas, assim como a de tantas mulheres silenciadas!
Marcos de Araújo Oliveira-UPE
Oi, Marcos, parabéns pelo texto tão interessante. Não sei até onde se encaminha a sua pesquisa e se vai dar continuidade, mas, se você ainda não tiver lido, O martelo das feiticeiras pode sugerir alguns encaminhamentos para o seu trabalho, escrito anteriormente a coroação e morte de Anna Bolena. Talvez seja possível perceber na obra relações com os "castigos" e posicionamentos, principalmente da igreja, contra ela. E mesmo que não tenha influencias, ainda pode ser uma boa referência nos estudo da construção da relação da mulher com a bruxaria.
ResponderExcluirPatrícia da Silva Azevedo (PPGH-UFRN)
Ola Patricia!
ExcluirObrigado por ler o texto!
Então, Ana Bolena é o tema do meu TCC!
Eu ja venho estudando muito sobre ela desde o 5° período e tem sido muito gratificante.
Neste artigo eu analiso a depreciação de Ana enquanto Bruxa , mas ja cheguei a trabalhar em outros artigos temáticas voltadas a Ana Bolena.
Marcos de Araújo Oliveira-UPE
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ResponderExcluirExcelente texto que mostra mais uma vez o sexo feminino saindo dessa parede feita pelo sexo masculino e não diferente, vimos que a mulher que conseguia ter ascenção do conhecimento era consequentemente discriminada, excluída e vista muitas vezes como figura que tentava subverter a ordem social. Isto não acontecia somente no recorte temporal do medievo, mas no século XIX encontramos os cânones "recheados" dos homens das letras e enquanto as mulheres presas ao espaço doméstico ou "as coisas do baú".
ResponderExcluirPor Joabe Rocha de Almeida
Obrigado pelos comentários Joabe!
ExcluirRealmente, a história de Ana Bolena é fascinante assim como a de outras mulheres silenciadas na História, e que são desvalorizadas por conta dos discursos depreciativos.
Marcos de Araújo Oliveira - UPE