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A DEMONIZAÇÃO DE UMA RAINHA: ANA BOLENA (1501-1536) E SUAS REPRESENTAÇÕES COMO BRUXA NA HISTÓRIA E NA LITERATURA



Marcos de Araújo Oliveira
Graduando em Licenciatura em História na Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Petrolina). É integrante do Spatio Serti – Grupo de Estudos e Pesquisa em Medievalística da UPE/Petrolina. Orientador: Prof. Dr. Luciano José Vianna (UPE/Petrolina).
E-mail:drmarcosaroeira@hotmail.com

Resumo: Durante todo o período que Ana Bolena (1501-1536) vivera um romance com Henrique VIII (1491-1547) da Inglaterra, ela foi bastante depreciada pela corte e pela Igreja, pois ia contra os padrões de comportamento feminino aceitáveis para sua época. O estigma de concubina recaía sobre Ana, mas seu nome também esteve vinculado a feitiçaria, pactos com o diabo e sortilégios. Encontramos, assim, alguns desses aspectos reverberantes de uma “Lenda Negra” de Ana Bolena na obra literária Lasher (1996) de Anne Rice. Este trabalho analisa o processo de demonização de Ana Bolena e os aspectos utilizados por Rice na construção de sua narrativa atribuindo a Ana Bolena características de uma bruxa. Vemos que através das metaficções historiográficas, que segundo Hutcheon (1991) são narrativas ficcionais que se apropriam das verdades e mentiras do registro histórico, a literatura contemporânea ao retratar Ana, expõe reflexos do próprio imaginário inglês do século XVI.

Palavras-chave: Ana Bolena, Lenda Negra, Demonização, Bruxaria, Literatura.


Introdução

Ana Bolena ficou conhecida como a segunda plebeia a ascender ao trono da Inglaterra. Coroada em maio de 1533, a jovem extremamente inteligente e audaciosa conseguira fazer com que o rei Henrique VIII (1491-1547), da dinastia Tudor, rompesse seu casamento com a princesa espanhola Catarina de Aragão (1485-1536) para casar-se com ela.
Ana Bolena, todavia, nunca foi bem aceita por seus contemporâneos, havendo inclusive na corte a “facção anti-bolena” que torcia pela queda da nova rainha. Esta mulher tão polêmica acabou por receber entre várias tentativas de depreciação de sua imagem o “adjetivo” de bruxa, despertando assim o desprezo de vários membros da corte. Entretanto, com o surgimento de novos estudos sobre a condição feminina da mulher medieval, a visão sobre Ana Bolena e suas contribuições históricas foi modificada, problematizando os vários estigmas difundidos historicamente acerca desta mulher.
Ainda assim, nota-se que em narrativas literárias a representação de Ana Bolena ainda é vinculada ao mundo da bruxaria, como no livro Lasher (1996) de Anne Rice, que ao apropriar-se da figura de Ana Bolena enquanto uma bruxa poderosa, mostra-se como uma extensão da “Lenda Negra” difundida no século XVI que atribuiu a ideia de Ana como bruxa, sendo válido, assim, debater e problematizar esses tipos de discursos acerca de Ana Bolena.
Ao se adotar uma metodologia na análise de uma fonte literária, é preciso destacar que o romance histórico, apesar de se apropriar da personagem Ana e de fatos históricos, é uma narrativa ficcional diferente das outras. Segundo Hutcheon (1991) esse tipo de narrativa é denominada como metaficção historiográfica, e destaca-se por unir literatura com história

Uma Rainha odiada

Ana Bolena era dama de companhia da Rainha Catarina, mas segundo Fraser (2014) estima-se que em meados de 1527-1528, a filha de Thomas Bolena e Elizabeth Howard teria chamado a atenção de Henrique VIII, cada vez mais insatisfeito com seu casamento e a ausência de um herdeiro homem, já que Catarina tinha tido uma série de gestações com abortos ou filhos mortos, sobrevivendo saudavelmente apenas Maria Tudor (1516-1558).
Ana, que passara sua juventude toda no Reino da França, sendo dama de companhia da rainha Cláudia, esposa de Francisco I, tornou-se uma mulher extremamente culta. Ela sabia interpretar, dançar e cantar muito bem, possuindo uma personalidade muito forte. Entretanto, Ana não contentara-se apenas em ser amante do monarca Tudor. Vendo na jovem a esperança de obter o herdeiro do trono inglês, Henrique VIII passou a buscar perante a Igreja a anulação de seu casamento com Catarina de Aragão, alegando que como a mesma foi a viúva de seu irmão, Artur Tudor (1486-1502), seu casamento fora amaldiçoado por Deus. O Papa Clemente VII (1523-1534) negou o pedido de Henrique várias vezes.
Ana Bolena, entretanto, já era uma admiradora das ideias reformadoras que atingiam a Europa no século XVI; costumava ler obras muitas vezes compreendidas como heréticas, sendo ela uma das principais influências para que Henrique lesse obras protestantes.
A Londres daquele período – aquela cidade tão pronta a incendiar-se com rumores de mudança na corte – era um foco de “evangélicos” ou pretensos reformadores religiosos. O desgosto deles para com as práticas do Clero da época concentrava-se em questões tão diversas quanto a falta de um celibato de verdade [...] e a prática de vender missas e orações pelos mortos. [...] a importação de textos e livros do exterior era um bom negócio. [...] Há várias histórias sobre Ana Bolena mostrando ao rei obras anticlericais ou possivelmente hereges. (FRASER, 2014, p.195-196)
            A autora Antônia Fraser (2014) aponta em Ana uma tendência às ideias reformadoras, e reafirma assim que Ana Bolena usou de suas prerrogativas femininas perante o rei, intercedendo pelos reformadores. Sem aguentar esperar mais, o monarca casou-se em segredo com Ana Bolena em janeiro de 1533 e em 1534 rompeu de vez com a Igreja Católica.
Com a aprovação do Ato de Supremacia, Henrique tornou-se chefe da Igreja na Inglaterra, beneficiando o rei com todos os bens e recursos eclesiásticos. Porém, sem mudanças teológicas nascia assim o Anglicanismo, consequência principal do relacionamento de Henrique VIII com Ana Bolena, um dos maiores marcos políticos, religiosos e culturais na Inglaterra do século XVI. (ANDRADE, 2013)
No dia 07 de setembro de 1533, Ana Bolena dera à luz não ao filho homem tão sonhado por Henrique VIII, mas sim a uma menina nomeada Elizabeth[1]. Ana continuou tentando gerar o herdeiro homem para Henrique, porém, sofreu dois abortos. O último deles, em janeiro de 1536, supostamente fora o de um feto masculino, no mesmo mês em que morria também Catarina de Aragão, banida e solitária no castelo de Kimbolton.
 Como aponta Tapioca Neto (2013) Ana, que em 1534 adotara como seu lema de rainha “The most happi” (A mais feliz), passava agora a enfrentar a ira do rei, que se sentia mais uma vez amaldiçoado em um casamento. A “mais feliz das mulheres” começou a ter sua queda arquitetada pelo próprio marido, que, receoso em enfrentar mais um processo de divórcio, resolvera livrar-se dela de um modo mais rápido e decisivo.

[,,,] sem ter conseguido dar à luz ao menino almejado pelo rei, Anne tornou-se vulnerável as intrigas de seus opositores. Assim, foi acusada de tê-lo seduzido através de bruxaria, de tramar a morte do rei, da princesa Mary e do Duque de Richmond, de ter cometido incesto com seu irmão George Boleyn, e adultério com outros cinco homens:  Henry Norris, Francis Weston, Willian Brereton, Marc Smeaton (O único que não fazia parte da nobreza e que sob tortura, confessou as acusações recebidas) e Sir. Thomas Wyatt (o poeta, o único que não foi levado a julgamento e que recebeu a liberdade). Julgada e condenada a morte pelas acusações recebidas, Anne Boleyn foi decapitada na Torre de Londres no dia 19 de maio de 1536. [...] Com aquela terrível condenação, a memória de Anne Boleyn foi irremissivelmente manchada com as máculas do incesto, bruxaria e adultério. (ANDRADE, 2013, p. 92-93)

Ana, coroada rainha em 23 de maio de 1533, reinou por mil dias, mudando para sempre o curso da corte, religião e política na Inglaterra. A espada de um carrasco francês silenciou a sua derradeira oração nos seus últimos instantes de vida, sendo o seu corpo selado em um sepulcro na capela de Saint Peter.

A condição da mulher medieval e a demonização de Ana Bolena
Foi a partir das conquistas do movimento feminista  entre as décadas de 60 e 70 que houve a emergência dos estudos do campo da História das Mulheres (SCOTT, 1992), proporcionando uma nova abordagem sobre as figuras femininas no Medievo (KLAPISCH-ZUBER, 1992), sendo possível visualizar uma expansão nas pesquisas acadêmicas acerca do papel de Ana Bolena, antes tão demonizada pelos estigmas de “concubina”, “inimiga da cristandade”, “adúltera” e possível “bruxa” , destacando-se no Brasil, as pesquisas de autores como Flávia Adriana Andrade (2013) e Renato Drummond Tapioca Neto (2013).
É preciso destacar, assim, que as relações de gênero no século XVI na Inglaterra eram marcadas por uma intensa desigualdade entre homens e mulheres. Segundo Klapisch-Zuber (1992), qualquer sociedade define culturalmente o gênero, dividindo socialmente os sexos e atribuindo-lhes papéis determinados. Dessa forma, machos e fêmeas assumem então a “condição” de homens e mulheres.
Nessa perspectiva, e face à construção simétrica dos papéis masculinos, os papéis atribuídos às mulheres são lhes impostos ou concedidos não em função das suas qualidades inatas – maternidade, menor força física, etc –, mas por razões erigidas em sistema ideológico; menos pela sua natureza do que pela sua suposta incapacidade de entrar na cultura (KLAPISCH-ZUBER, 1992, p. 12).

Klapisch-Zuber (1992) aponta também que a maioria dos registros sobre as mulheres medievais partem de homens ligados ao contexto religioso. Esta visão cristã condicionava a figura da mulher como alguém a ser virtuosa, tal qual a Virgem Maria, evitando uma conduta pecadora e consequentemente abominando figuras que fossem em oposição a este padrão de comportamento como no caso de Ana Bolena.
Segundo a concepção cristã do século XVI, a mulher deveria viver para o marido e a família, prezando por um comportamento que refletisse o recato e a virtude. Aquelas que fugissem a esse padrão eram logo vistas com desconfiança pela sociedade e ao mínimo deslize, seriam taxadas por uma série de apelidos, entre os quais o de bruxa. (TAPIOCA NETO, 2013, p. 43)
Por ter feito um rei romper com a sua esposa – e pior, com o Papa –, Ana obteve uma visão muito depreciativa de seus contemporâneos, mais forte após sua decapitação diante de tantas acusações polêmicas. Entretanto, ela não foi acusada formalmente em seu julgamento como bruxa, o boato que cresceu apontando a mesma como uma mulher ligada a feitiçaria nasceu na corte por meio das pessoas que não gostavam de Ana enquanto rainha e foram alimentados pelo próprio rei Henrique VIII.
Muito mais tarde diriam que o rei justificou isto tudo fazendo uma referência a feitiçaria: ele tinha sido enfeitiçado por Ana Bolena, isto não era literalmente verdade. Ela não era uma feiticeira – fosse lá o que línguas maliciosas pretendessem –, não fez feitiços nem criou poção alguma com a ajuda do diabo, “o Inimigo da Humanidade” para conquistar o amor do rei. Mas em outro sentido, Henrique VIII foi enfeitiçado: não apenas pela juventude, pela graça e vivacidade de Ana, mas pela promessa que ela oferecia de um casamento fértil (com filhos homens para sucedê-lo – como Francisco I e Carlos V, de algum modo ele tinha sido privado disso. (FRASER, 2014, p. 185).
Toda esta crescente depreciação de Ana Bolena vinculando a sua imagem à de uma bruxa só fez com que a rainha fosse ainda mais odiada, o que justificou muito da má aceitação para com ela. Nota-se, com isso, que a ascensão de Ana na corte e o fato da mesma ser mulher, e ainda ter sido amante do monarca Tudor, acaba influenciando para a cristalização de preconceitos acerca da mesma.
Segundo Tomazelli (2015), a misoginia medieval, herança da Antiguidade Clássica e dos escritos dos Padres da Igreja, reforçou a concepção da mulher como meio para o pecado e perdição. Vista como maligna, a mulher podia ser instrumento do Diabo, o que despertava uma certa repreensão em relação a mulher, pois temia-se sua sexualidade. Dessa forma, os discursos religiosos difundidos a partir do século XIII, além de disseminarem o pânico em relação ao demônio, consolidaram o arquétipo das malévolas bruxas, tidas como suas aliadas.
Sendo assim, Tomazelli (2015) esclarece que, a passagem do final do medievo para o princípio da modernidade faz nascer a bruxaria demonizada, tendo sua origem em três fatores principais: na elaboração clerical da demonologia, na diabolização da mulher e no temor ao fim dos tempos.
Com a inimizade do Vaticano, a vilanização somou-se a demonização. Os católicos, passaram a criar inúmeras ficções, vinculando Anne, a herege protestante, ao demônio, atribuindo a ela características físicas monstruosas, extremas crueldade e práticas de bruxarias. Os processos de vilanização e demonização da personagem foram acentuados com base nas acusações do processo que a levou a morte, incesto, bruxaria, adultério, ninfomania e assassinato. Some-se a tudo isso que o casamento de Ana fora declarado nulo e ela recebeu oficialmente o status de concubina do Henry VIII. (ANDRADE, 2013, p.19)
Logo aspectos apontados como diabólicos ou pecaminosos foram difundidos a respeito de Ana, trazendo para esta mulher o pecado e a vilania de uma bruxa. Ainda de acordo com Andrade (2013), todos estes aspectos negativos atrelados a figura de Ana Bolena serviram para alimentar uma espécie de “Lenda Negra” acerca dessa importante figura histórica. Esta difusão de ideias obscuras sobre Ana impulsionou a “Licença Poética” de Anne Rice para a escrita de seu romance Lasher (1996), personificando a rainha como uma bruxa.

A “Lenda Negra” de Ana Bolena presente em Lasher (1996) de Anne Rice

De acordo com Andrade (2013), muito do imaginário negativo que se criou a respeito de Ana Bolena foi difundido por Nicholas Sanders, católico opositor ao governo de Elizabeth I, nascido em torno de 1530 e que provavelmente nunca tivera contato com Ana Bolena. É Nicholas Sanders que faz a descrição mais horripilante a respeito de Ana, afirmando que a mesma possuía “um dente projetado para frente sob o lábio inferior, uma verruga no queixo e seis dedos na mão direita” (ANDRADE, 2013, p.153).
Segundo Andrade (2013), foi Nicholas Sanders que criou a história de que na última tentativa de gerar o herdeiro homem para Henrique, Ana Bolena teve um aborto na qual o feto seria do sexo masculino e estaria todo deformado. Sendo assim, Sanders claramente atribuía a Ana Bolena uma representação monstruosa. Atualmente, vemos que várias produções cinematográficas ou até literárias perpetuam essa “Lenda Negra” a respeito de Ana Bolena que influencia no imaginário contemporâneo, vendo-a como bruxa, como na cena do filme Harry Potter e a Pedra Filosofal (2001) – onde um retrato de Ana Bolena é exposto na galeria da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, considerando-a uma bruxa importante.
Mas, no campo da Literatura, essa ideia de Ana Bolena como bruxa também foi reproduzida, pois vemos que Ana Bolena também é retratada como bruxa na obra Lasher (1996) terceiro livro da série As Vidas dos Bruxos Mayfair, publicado no Brasil pela Editora Rocco. A obra é escrita pela norte-americana Anne Rice, autora de séries de terror e fantasia sobrenatural, considerada uma das autoras mais aclamadas e lidas da América.
Lasher (1996) conta em seu enredo central a história de uma entidade sobrenatural chamado Lasher, sendo um ser cuja natureza mística é extremamente enigmática e obscura, com a missão de acompanhar por gerações as bruxas da família Malfoy. Lasher na verdade é filho de um homem chamado Douglas de Donnelaith (morador de uma aldeia fictícia chamada Donnelaith). Douglas é um personagem fictício, pertencente a um clã de Donnelaith cuja genética permite que os seus membros, ao manterem relações sexuais com bruxas, originem seres adultos extremamente fantásticos, de uma raça diferente dos humanos e bruxos, chamados de Taltos.
Segundo o romance de Anne Rice, Lasher teria sido o feto deformado que Ana Bolena teria abortado em 1536, o que demonstra que essa “Lenda Negra” acerca de Ana Bolena inspirou Anne Rice a descrevê-la como uma mulher adúltera, já que a mesma manteve relações extraconjugais com Douglas de Donnelaith (por mais que seja um personagem fictício), e também como bruxa, já que Ana geraria um monstro. Em uma passagem do livro, vemos Lasher descrever seu nascimento, o que só reforça a ideia da obscuridade de Ana.
Eu sabia quem ela era, que eu estivera dentro dela, e sabia que ela corria perigo de vida. Que, quando se revelasse minha monstruosidade, ela seria indubitavelmente chamada de bruxa e condenada à morte. Ela era uma rainha. E as rainhas não podem parir monstros. Que o rei não havia posto os olhos em mim, que as mulheres o estavam mantendo afastado dos aposentos, isso eu também sabia. As mulheres sentiam tanto medo de mim quanto minha mãe. [...] Minha mãe chorava sem parar e não queria me tocar. Ela falava em inglês e dizia que Deus a amaldiçoara pelo que havia feito, Deus amaldiçoara a ela e ao rei. E agora seus sonhos estavam destruídos. Eu era o castigo vindo dos céus: minha deformidade, meu tamanho, o fato óbvio de eu ser um monstro. De eu não poder ser um ser humano. (RICE, 1996. p.446)

O momento em que o passado de Lasher vem à tona, se passa no reinado de Elizabeth I, quando a mesma é coroada em 1559. A narrativa literária de Rice explora e reproduz aspectos de um imaginário depreciativo acerca de Ana Bolena, como o fato dela ter seis dedos, por exemplo. “Minha mãe levantou-se e me encarou em meio às lágrimas. Ergueu a mão esquerda. Vi ali a marca da bruxa, o sexto dedo. Eu soube que voltara por meio dela por ser ela uma bruxa poderosa, embora inocente como todas as mães” (RICE, 1996, p. 446).
De acordo com Tapioca Neto (2013), algumas deformidades físicas em Ana só endossariam ainda mais o argumento de que ela valeu-se de sortilégios para conquistar o rei. Uma vez que Henrique se casara com Ana Bolena na esperança de que ela pudesse lhe dar um filho saudável e como ela não cumprira esse desejo, “então as pessoas acusaram o aborto da rainha como resultado de possíveis práticas de bruxaria e, portanto, se fazia necessário que o rei arrumasse uma nova esposa o mais rápido possível” (TAPIOCA NETO, 2013, p. 35).
Ao avançar do enredo no livro, Lasher é confrontado por Emaleth, filha de Douglas e, portanto, sua irmã bruxa, sobre ser filho de Ana Bolena, e sente-se acuado pois este segredo ficara guardado durante muito tempo, já que logo que nasceu Lasher teve que partir com o seu pai e não teve maior contato com sua mãe, condenada e morta tempos depois.
-Não sei o que você está dizendo, não compreendo. Minha mãe era uma grande rainha. Nunca soube seu nome. - Gaguejei ao dizer isso porque há muito eu já havia adivinhado quem ela poderia ter sido, e era tolice minha fingir que não sabia. [...]
-Era a Bolena - disse a mulher, Emaleth, minha irmã. - A rainha Ana foi sua mãe e foi condenada à morte por feitiçaria e por gerar monstros.
Abanei a cabeça. Eu via apenas aquela pobre mulher assustada, pedindo aos berros que me levassem dali. - Bolena - sussurrei. E me ocorreram todas as velhas histórias dos mártires daquela época: os cartuxos e todos os padres que se recusaram a legitimar o perverso casamento do rei com a Bolena. Minha irmã prosseguiu, ao ver que eu não a contradizia, nem falava nada
- E a rainha da Inglaterra que está agora no trono é sua irmã - disse ela - E tem tanto medo do sangue da mãe que gera monstros que não permite que homem nenhum toque nela e nunca irá se casar! (RICE, 1996, p. 490)

Neste trecho do livro, Anne Rice utiliza-se da sua “liberdade criativa” para justificar a condenação de Ana Bolena que foi arquitetada por Henrique VIII por considera-la uma bruxa; e também o fato de Elizabeth I nunca ter se casado, por ter medo da sua descendência ser monstruosa tal qual igual sua mãe, o que até onde se sabe pela historiografia – a exemplo de Antonia Fraser (2014) que nega que Ana tenha sido bruxa-, isto não é verídico.
As palavras me atingiram como tudo: música, beleza, assombro ou medo. Eu sabia. Eu compreendia. Bastava que eu me detivesse por um instante de verdade na velha história. A rainha Ana, acusada de encantar Sua Majestade e de par uma criança deformada no leito real. Henrique, ansioso por provar que não era o pai, acusou-a de adultério e mandou que cinco homens de reconhecida perversidade e falta de moral preparassem o terreno para que ela fosse decapitada. (RICE, 1996, p. 490)
Entretanto, Tapioca Neto (2013) argumenta que todas essas acusações de bruxaria não passavam de conspirações contra Ana por conta de sua personalidade forte e por ter conquistado o Rei. Para o historiador, uma mulher com as características de Ana Bolena constituía-se num prato cheio para aqueles que queriam acusá-la de bruxa e de manter relações com o diabo.
Considerações finais
Ainda que não houvesse qualquer prova ou registro de que Ana Bolena fosse realmente uma feiticeira como seus caluniadores apontaram, ela acabou pagando um preço alto por ser mulher e por despertar a paixão de Henrique VIII. Ter influenciado na reforma religiosa serviu ainda mais para toda a construção da demonização da sua imagem, o que perdura até hoje, seja em obras literárias ou até cinematográficas.
 A obra Lasher (1996) da americana Anne Rice, ao representar a personagem Ana Bolena como uma bruxa que enfeitiçou o rei e gerou monstros, apropria-se assim do imaginário que perpetua a “Lenda Negra” acerca desta rainha, vilanizando esta figura histórica como adúltera, bruxa e pecadora. Entretanto, a narrativa ficcional não possui compromisso algum com a verdade, podendo-se, assim como a própria História, tecer suas próprias interpretações e dar versões acerca dos fatos e sujeitos históricos.


Referências

Fontes

FRASER, Antonia. Ana Bolena. In:______. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Rio de Janeiro: BestBolso, 2014. p. 150-300.

RICE, Anne. Lasher: As Vidas dos Bruxos Mayfair – Livro 3. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. 576 p.

Bibliografia

ANDRADE, Flávia Adriana. Ficções de Anna Bolena, na história e na literatura contemporâneas. 2013. 390 f. Tese (Doutorado) – Instituto de Letras. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: História, Teoria, Ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. 331 p

KLAPISCH-ZUBER, Christiane. Introdução. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle (Orgs). História das mulheres no ocidente: A idade média. Porto: Afrontamento, 1992. p. 9-23.

SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História. São Paulo: Unesp, 1992. p. 63-95.

TAPIOCA NETO, R. D.  A condição da mulher na Inglaterra do século XVI:  O discurso feminista em The Secret Diary of Anne Boleyn (1997). Monografia de conclusão de curso (História) – Universidade Estadual de Santa Cruz. Ilhéus, 2013. 62 p.

TOMAZELLI, Roni. Para onde foram as bruxas? Os estudos históricos sobre a bruxaria tardo medieval. In: V Encontro Internacional de História UFES/ Paris-Est. 5., 2015, Vitória. Anais eletrônicos...Vitória:         LHPL, 2015,            p.940-949.      Disponível      em: http://periodicos.ufes.br/UFESUPEM/article/view/12355/8634 >. Acesso em: 05 de jul. 2019.





[1] Mesmo sendo mulher, Elizabeth assumiu o trono e ficou conhecida como a “Rainha Virgem”, por não casar-se com nenhum homem. Seu reinado ocorreu entre 1558 e 1603, e é lembrado como a “Era de Ouro” inglesa.

Comentários

  1. Texto interessante. Eu gostaria de saber se - mesmo sendo mais culta, sabendo interpretar, dançar, cantar, tendo acesso a certa literatura da época, e possuindo outros modos de comportamento, mais requintados, em consequência de suas experiências nos ambientes reais, seja francês ou inglês -, se Bolena também foi taxada com todos aqueles más esteriótipos pelo fato de justamente ter esses conhecimentos - que à época poderiam ser considerado impróprios para mulheres - e utilizá-los ñ apenas para ascender ao trono, mas também como, digamos, estratégias em um certo grau de possibilidades de liberdade e defesa, na medida do possível, mínimo que seja, dos plebeus da opressão.

    Rafael Souza Ferreira

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    1. Olá Rafael!Obrigado pela pergunta!
      Sobre Ana Bolena, é possivel apontar que a mesma foi criada por seu pai Thomas Bolena para ser uma mulher em ascensão.
      Ana desde a infância sempre mostrou-se um prodígio, isso levou ao seu sucesso como dama de companhia na França e posteriormente a sua ascensão como rainha na Inglaterra.
      Sobre as suas estratégias para um grau de liberdade e defesa, também acredito que a mesma usou toda a sua inteligência para desistir seu destino. Tapioca Neto (2013) e Antônia Fraser (2014) são unânimes em apontar que Ana nunca foi uma mulher que se encaixasse em padrões e talvez por isso ela não se contentava em ser submissa a um homem e ficar presa ao lar, e o fato de ser plebeia nunca a impediu de dialogar e participar como uma igual na corte Tudor.
      Pode-se pensar que o poder é tentador tanto para nobres como para plebeus, Ana Bolena não fugiu a essa regra, tanto é que não mediu esforços para ocupar o cargo de Rainha, o que levou anos de espera e até mesmo uma reforma religiosa, e ao assumir o trono sempre foi uma figura marcante ao lado de Henrique, mostrando que mesmo sendo plebeia, a mesma tinha competência para tal posto real.

      Marcos de Araújo Oliveira

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  2. Muito bom o trabalho sobre a história de vida de Anna Bolena. Senti apenas que algumas de suas palavras-chave não estavam tão presentes no texto, como por exemplo a palavra "lenda negra". Como sugestão de leitura (pode ser que ajude), indico a obra "O fio e os rastros" de Carlo Ginzburg em que o historiador italiano faz uma ponte entre a ficção e a história. Seria legal também trabalhar o conceito de demonização (como tá no título do trabalho). A Laura de Melo tem um trabalho que pode servir com relação a isso, que se chama "Inferno Atlântico: demonologia e colonização, séculos XVI-XVIII.

    Davi Benvindo de Oliveira

    Davi Benvindo de Oliveira

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    1. Oi Davi!
      A Lenda Negra a respeito de Ana Bolena foi difundida por seus opositores, como expus em meu texto.
      É uma perspectiva muito abordada tambet por Andrade (2013).
      Obrigado pelas dicas bibliográficas!

      Marcos de Araújo Oliveira-UPE

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  3. Parabéns pelo trabalho. É preciso romper com esse imaginário em volta da figura de Ana Bolena. Trabalho como o seu é de grande relevância e contribuem significativamente.

    Vanessa Cristina da Silva Sampaio - Universidade Federal do Amazonas - UFAM.

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    1. Olá Vanessa! Muito obrigado por ter lido o texto.
      Acredito que precisamos sim romper enquanto historiadores com esses discursos depreciativos que se referem a grandes figuras femininas, valorizando as suas contribuições historicas.

      Marcos de Araújo Oliveira - UPE

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  4. Oi, Marcos! Parabéns pelo trabalho, me encantou demais. Gosto muito da história da Ana Bolena, a vejo como uma personagem muito forte e de grande influência na história. Uma pena que, como você trabalhou no seu texto, ela seja tão estigmatizada e taxada como a vilã de toda a história, vejo muitas semelhanças do que aconteceu com ela no que aconteceu também com outras mulheres que se envolveram com membros da família real inglesa como a Wallis Simpson e a própria princesa Diana, claro que o fim dessas duas últimas não foi tão cruel como o de Bolena, mas elas também foram responsabilizadas por tudo, sem dividir a culpa com a parte masculina da história. E isso é algo que precisa ser revisto, como você fez no seu texto. Parabéns!


    Camila Rafaela Pereira de Souza (UFRN)

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    1. Obrigado Camila!
      Suas considerações são motivadoras!
      Creio que as contribuições de Ana devem ser evidenciadas, assim como a de tantas mulheres silenciadas!

      Marcos de Araújo Oliveira-UPE

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  5. Patrícia da Silva Azevedo1 de agosto de 2019 às 17:30

    Oi, Marcos, parabéns pelo texto tão interessante. Não sei até onde se encaminha a sua pesquisa e se vai dar continuidade, mas, se você ainda não tiver lido, O martelo das feiticeiras pode sugerir alguns encaminhamentos para o seu trabalho, escrito anteriormente a coroação e morte de Anna Bolena. Talvez seja possível perceber na obra relações com os "castigos" e posicionamentos, principalmente da igreja, contra ela. E mesmo que não tenha influencias, ainda pode ser uma boa referência nos estudo da construção da relação da mulher com a bruxaria.


    Patrícia da Silva Azevedo (PPGH-UFRN)

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    1. Ola Patricia!
      Obrigado por ler o texto!
      Então, Ana Bolena é o tema do meu TCC!
      Eu ja venho estudando muito sobre ela desde o 5° período e tem sido muito gratificante.
      Neste artigo eu analiso a depreciação de Ana enquanto Bruxa , mas ja cheguei a trabalhar em outros artigos temáticas voltadas a Ana Bolena.

      Marcos de Araújo Oliveira-UPE

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Excelente texto que mostra mais uma vez o sexo feminino saindo dessa parede feita pelo sexo masculino e não diferente, vimos que a mulher que conseguia ter ascenção do conhecimento era consequentemente discriminada, excluída e vista muitas vezes como figura que tentava subverter a ordem social. Isto não acontecia somente no recorte temporal do medievo, mas no século XIX encontramos os cânones "recheados" dos homens das letras e enquanto as mulheres presas ao espaço doméstico ou "as coisas do baú".
    Por Joabe Rocha de Almeida

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    1. Obrigado pelos comentários Joabe!
      Realmente, a história de Ana Bolena é fascinante assim como a de outras mulheres silenciadas na História, e que são desvalorizadas por conta dos discursos depreciativos.

      Marcos de Araújo Oliveira - UPE

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