Natália Maria da Conceição Oliveira.
Mestre em História da Igreja
pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Itália; Mestre em História do
Brasil pela UFPI.
Introdução
São muitas as formas de escrita da História, as quais surgem a partir de
diferentes campos, temas, fontes e metodologias. Diante deste leque de
possibilidades este artigo, parte da dissertação de mestrado realizada na
Pontíficia Universidade Gregoriana em Roma, em 2018, desenvolve uma temática
que possui como objeto de estudo as Instructionum
fabricae et supellectilis ecclesiasticae libri II, publicadas em 1577, de Carlos Borromeu. Esse texto também
é conhecido por seu título abreviado: Instructiones
fabricae.
Esta fonte aparece como protagonista, no entanto, é por meio dela que se
apresentam o seu autor, o contexto em que elas surgem, bem como a intrínseca
relação existente entre o documento e a influência que ele exerceria ao longo
dos séculos sucessivos. Esta pesquisa buscou apresentar como elas interferem
diretamente na história da Igreja, pois influenciaram e continuam influenciando
a Religião Católica na questão da construção dos edifícios sacros e do cuidado
com os objetos litúrgicos.
Este estudo tem, vale dizer, como corte cronológico o período que vai de
1538 até 1610, período no qual Carlos Borromeu nasceu, tornou-se cardeal,
participou da reabertura e finalização do Concílio de Trento e exerceu seu
episcopado na Diocese de Milão. Nessa fase da história, as Instructiones fabricae foram elaboradas e executadas na diocese em 1577, por ocasião do III Concílio
Provincial.
De acordo com Le Goff, o dever principal de um historiador “é a crítica
do documento” (LE GOFF, 1978, p. 41). Este deve ser visto como um produto da
sociedade que o fabricou, segundo as relações de poder. Portanto, somente a
análise do documento em quanto documento consente a memória coletiva de
recuperá-lo e, ao historiador, a capacidade de poder utilizá-lo de maneira
científica, com plena noção de causa.
Segundo este autor, o documento deve ser
analisado como o produto de um centro de poder, que deve ser estudado em uma
prospectiva religiosa, social, econômica, política, cultural, ou seja, como um
instrumento de poder. Para a operacionalização dessa fonte, Instructiones fabricae, era necessário
haver a consciência, que ela não deveria ser isolada de seu contexto, mas que
devia ser percebida como algo que exprimia a superioridade não do seu
testemunho em si, mas da sociedade que a produziu e daquela que ainda a divulga
como modelo a ser seguido, ou seja, como um instrumento cultural de peso.
Para afrontar a retomada de um texto do passado como um “mito” para os
tempos hodiernos é necessário compreender que não existe história que não
busque o encontro entre o passado e o presente, que não mendigue a resistência
dos outros e que não prove ou provoque esta “heresia” do passado em relação ao
presente. No entanto, esta função da história corresponde e deve corresponder a
paixão do historiador. Portanto, se o pesquisador tem por objetivo fornecer aos
seus contemporâneos esta parte da sua imagem social que integra um passado a um
presente, ele descobre uma missão mais difícil, que consiste em revelar a
negação desta mesma imagem em um momento do passado. Ele, pouco a pouco, deve
evitar a redução dos homens do passado a símiles do presente. Deve impedir que
tudo seja visto pelos olhos de sua cultura. Ele deve perceber a razão longínqua
e profunda que atribui ao mínimo fato da história: “Aconteceu; esteve”. Para
Certeau, isso é um grão de areia, que liga um sistema social, que gera um
espelho coletivo (CERTEAU, 2006, p. 53-54).
Contudo, não é possível chegar até os homens do
passado sem passar pelos homens do presente. Esse percurso, a mediação dos
outros, hoje, é a condição para atingir a alteridade do passado. As escolhas
feitas pelo pesquisador do presente, permite a determinação de um objeto, que
se distinguirá pelas várias formas de olhar.
Sendo assim, pode-se dizer que mesmo repreendendo às fontes mais
primitivas, os sistemas históricos e linguísticos, a experiência que escondem
ao se desenvolverem, o historiador nunca alcança a sua origem, mas apenas os
estágios sucessivos da sua perda. Segundo Certeau as fontes analisadas e
descritas são relativas à resposta que cada autor dá às questões análogas do
presente, é uma leitura do passado (CERTEAU, 2011, p. 73). No entanto, por mais
controlada que seja essa análise dos documentos, ela é sempre dirigida em
função de problemáticas impostas por uma situação. Elas são conformadas por
premissas, quer dizer, por modelos de interpretação ligados a uma situação
presente do cristianismo.
As ideias de Certeau, serviram para que se
criasse a consciência que as Instructiones
fabricae e Carlos Borromeu faziam parte de uma sociedade que deixava de ser
religiosamente homogênea: o crente passava a se diferenciar do incrédulo, ou
católico do protestante, pelas práticas. Tornando-se assim um elemento social
de diferenciação religiosa, a prática ganhou uma pertinência nova. Além disso,
as diferenças de saberes tornaram-se decisivas, pois aquilo que se conhecia,
quando se era Católico ou Reformado, fornecia à comunidade seu modo de
identificação e distinção. A sociedade mudou, remodelada pela urgência dessas
definições que circunscreviam ao mesmo tempo os conteúdos intelectuais e os
limites sócio institucionais. O século XVI foi marcado pela relação entre dois
sistemas de compreensão: a passagem de uma sociedade ainda religiosa a uma
sociedade, a nossa, que se secularizou.
Para melhor sintetizar as análises sobre as Instructiones fabricae (1577), optou-se
por dividir este trabalho em três tópicos, assim intitulados: São Carlos
Borromeu; O Concílio de Trento; As
Instructiones fabricae e a construção das igrejas.
São Carlos Borromeu
O historiador que estuda Carlos Borromeu, encontra-se sempre diante de
considerações e afirmações, que formam um “monumento”, pois sobre ele existem
inumeráveis obras e documentos. Porém, diante disso, deve-se buscar compreender
a estratificação ocorrida no tempo e no espaço, deve-se observar os documentos
como um monumento. O documento é um produto da sociedade que o fabricou,
segundo as relações entre aqueles que detinham o poder (LE GOFF, 1978, p.
38-43). Portanto, ele serve para recuperar a memória coletiva de determinado
período e assim, propiciar a sua análise científica.
Carlos Borromeu, nascido em dois de outubro de 1538 no castelo de Arona,
terceiro filho de Gilberto e de Margarida Médici, irmã de Pio IV. Aos sete
anos, em treze de outubro de 1545, foi agregado ao clero milanês. Com a idade
de nove anos perdeu a mãe. Carlos viveu seus primeiros anos entre Angera e Pávia.
Depois dos primeiros estudos realizados em Milão, foi inscrito na Universidade
de Pávia, esta era menos expressiva que outros centros universitários do
momento, como Pádua e Bolonha. Durante os anos de estudo acadêmicos perdeu o
pai, em 27 de julho de 1558.
Na segunda fase de sua vida, como cardeal, surge como o protagonista de
uma transição na qual tradição e novidade encontram uma expressão criativa. A
eleição de Pio IV, como sucessor de Paulo IV, constituiu uma reviravolta na
vida de Carlos. Apenas eleito, uma grande quantidade de parentes do novo
pontífice se dirigiu a Roma, buscando cargos e vantagens. Dentre estes, estava
Borromeu, conforme Pastor, um dos favoritos (PASTOR, 1943, p. 82).
Sobre essa temática, Armando Guidetti, apresenta a imagem de um jovem
cardeal que conduzia uma vida de príncipe, em um «splendore plane regio». (GUIDETTI, 1984, p. 13-14). Neste tempo,
mesmo diante da pouca idade e de anseios comuns aos demais cardeais do
renascimento, de acordo com Pastor, o Papa Pio IV teria encontrado no sobrinho tudo
o que ele necessitava: um auxílio abnegado, perseverante, assíduo e paciente
para seguir as suas instruções (PASTOR, 1943, p. 82).
Outra fase significativa para os biógrafos de Carlos Borromeu, foi a
morte de seu irmão, pois, segundo estes, nesse momento trágico ocorreu a sua “conversão”.
Diante dessas afirmações, pode-se refletir sobre um acúmulo de fatos, que
somados a morte repentina do irmão provocaram uma mudança nos ideais do jovem
cardeal. Dentre estes, aparece a influência dos jesuítas e as reuniões nas
Noites Vaticanas. Estas reuniões da Academia das Noites Vaticanas, foram
iniciadas em vinte de abril de 1562.
Michel De Certeau, descrevendo essa “conversão”, também compartilha da
ideia quando afirma que vários elementos influenciaram essa decisão. Ele cita a
morte do irmão, Frederico Borromeu, mas acrescenta as relações pessoais com os
jesuítas e com os teatinos. Além disso, faz referência ao encontro com o
português Bartolomeu Martyribus. Por
desejo de Pio IV, o prelado português encontrou Carlos e, a partir desse
momento, surgiu uma intensa troca de experiências, especialmente devido a
apresentação de seu texto: Stimulus pastorum. (CERTEAU, 1977, p. 263). O encontro entre Martyribus e Carlos Borromeu, associado a
importância do concilio e a urgência das reformas, tornou-se um marco crucial
para o cardeal, que poucos dias após a conclusão do Concílio de Trento recebeu
a consagração episcopal. Essa decisão foi sucessiva a este encontro com o
prelado português.
No contexto do seu empenho episcopal, manifestou-se um empenho ascético.
A partir de 1564, ele iniciou uma série de mudanças em seus hábitos, que
influenciaram diretamente a vida de sua família cardinalícia. A corte se
mostrou insatisfeita, por esse motivo alguns o definiram como uma “pessoa
friíssima”. (PASCHINI, 1958, p. 107-123).
Carlos com o avançar dos meses e dos anos adquiriu experiência e maturidade,
formou uma visão pessoal dos problemas afrontados no Concílio de Trento,
encontrou coragem de aconselhar o papa e de fazê-lo refletir sobre algumas
decisões repentinas. Porém, segundo Fois as decisões, a vontade programática
não era sua. Ele transmitia as decisões do papa. (FOIS, 1989, p. 10).
Diante dessas discussões, há necessidade de prudência crítica, pois
pensá-lo como um personagem imprescindível para a conclusão do concílio,
remonta a uma ideia simplória. Porém, aderir a visão negativa de Jedin que
afirma que Carlos foi passível diante das decisões de seu tio (JEDIN, 1971, p.
09-10), é igualmente ingênuo. Diversamente, é necessário refletir se a posição
de Carlos Borromeu passiva ou ativa, tenha suscitado nele uma experiência
conciliar, que futuramente seria relevante para a sua ação pastoral na Diocese
de Milão.
Sendo assim, em vinte e cinco de março, ele comunicou a Diocese de Milão
a sua decisão de convocar um concílio provincial, como previa o Concílio de
Trento. Diante disso, percebe-se que o desejo do serviço episcopal em Carlos
era algo que começava a consolidar-se. Nesse período ele anunciou o nome de seu
vigário, Nicolau Ormaneto[1],
sacerdote da Diocese de Verona. (CERTEAU, 1977, p. 263).
O período romano foi concluído em dezembro de 1565; Pio IV morreu mais
ou menos dois meses da sua entrada em Milão. O clima no mundo católico era
permeado pelo desejo de aplicação dos decretos de Trento, nesse ambiente a
figura de Carlo Borromeu, como homem de iniciativas de reforma, gerou
referimentos cada vez mais espontâneos.
Uma terceira fase na vida de
Carlos Borromeu, 1566 a 1584, inicia-se com a decisão de exercer na Diocese de
Milão, de forma concreta, o seu episcopado. A sua vida era orientada por
preocupações eclesiológicas, pela experiência ascética e por intensa atividade
pastoral.
Partindo desse pressuposto, Alberigo ressalta que Carlos, iniciava uma
experiência não somente nova para ele mesmo, mas inédita para a Igreja (JEDIN;
ALBERIGO, 1964, p. 127). Sob o mesmo ponto de vista, Jedin defende que ele
entrou para a história da Igreja, não por ser sobrinho de Pio IV, mas
justamente por sua atividade como arcebispo de Milão (JEDIN, 1971, p. 13).
Carlos entrou na Diocese de Milão em setembro de 1565, era chegada a
hora de confrontar-se com a diocese. Após a morte do tio, em nove de dezembro
de 1565, sairá da sua diocese em raras ocasiões: conclaves, peregrinações e
visitas a Suíça e Veneza. Foram dezoito anos empenhados no serviço pastoral
daquela província eclesiástica. As suas ações encontraram incentivo nas
oposições das autoridades civis e políticas, das ordens religiosas, de parte do
clero e, contudo, foi solicitação de um crescente consenso popular.
O bispo, neste contexto demonstrava, mediante suas ações, uma
consciência a respeito da necessidade de uma organização coerente da sua
diocese, especialmente para poder resistir diante das interferências do poder
temporal. Partindo desse pressuposto, percebe-se que o seu objetivo era
transformar o clero em um “corpo”, articulando uma organização e uma ideologia
religiosa mobilizadora, o primeiro elemento deveria ser uma administração
eficaz, o outro seria a pregação com autoridade. Através desses elementos, ele
foi capaz de promover uma conexão entre gestão institucional e uma capacidade
de crer e de fazer com que o povo a ele confiado, também cresse. Durante o seu
episcopado ele soube associar política e espiritualidade.
A pastoral de Carlos Borromeu se consolidou através dos sínodos, estes
foram cerca de onze, dos concílios provinciais (1565, 1569, 1573, 1576, 1579,
1582), das visitas apostólicas realizadas nas dioceses sufragâneas (Cremona,
Bergamo, Vigevano e Brescia), da centralização milanesa e da restauração do
rito ambrosiano. Todos esses elementos propiciaram uma unificação do
território.
Borromeu foi construindo uma imagem que o fez ser “emido e admirado”,
seja pelos conflitos com o governo espanhol, seja a propósito do rito
ambrosiano ou por quaisquer de suas decisões a frente de seu governo episcopal.
Sobre isso, Carlos Bascapé, um de seus biógrafos e colaboradores, descrevendo a
ação inicial de Borromeu, afirmou que muitos de seus amigos eram preocupados
com a reforma de costumes que ele propunha, pois era vista como extraordinária
para aquele tempo. Estes temiam que tais ideais fossem frustrados, pois, eram
vistos como muito difíceis de serem colocados em prática (BASCAPÉ, 1965, p.
74-75).
Carlos Borromeu emanou inúmeros editos em execução dos decretos
tridentinos, dos concílios provinciais e dos sínodos diocesanos. Pode-se citar
como exemplo, aqueles sobre os livros proibidos, sobre a observância das
festas, sobre o modo de fazer peregrinação aos santuários.
Certeau chama atenção para a caridade e a dedicação extraordinária de
Carlos, durante a peste de 1576, demonstrando que o bispo adquiriu uma
popularidade em resposta ao serviço em relação ao povo. Essa notoriedade não
era tanto devido a sua pessoa, mas fazia referência a sua função e as suas
atitudes (CERTEAU, 1977, p. 267).
Partindo dessa perspectiva, pode-se perceber como Carlos Borromeu,
através de seus gestos, até mesmo de piedade, conseguiu suprimir certos bailes
e “superstições”. A sua religião era unida com a espiritualidade italiana, que
não era abstrata, mas se manifestava na piedade popular. Sendo assim, quando
ele guiava procissões de relíquias, professava-se devoto de santos, realizava
peregrinações, conseguia atingir os seus diocesanos mediante essa integração da
religiosidade popular.
O cardeal, que não passaria despercebido pela história da Igreja, deu
início a seus passos finais em outubro de 1584, quando se encontrava a Sacro
Monte de Varallo para os seus exercícios espirituais. Sofrendo de ataques de
febre, em vinte e oito de outubro inaugurou o colégio Papio, no dia primeiro de
novembro celebrou sua última missa a Arona e no dia seguinte foi transportado para
Milão. Sua morte ocorreu no dia seguinte, foi sepultado no dia sete de novembro
próximo ao altar maior da catedral de Milão. No entanto, a sua vocação ainda
iria ser levada adiante, pois posteriormente seria canonizado em 1610, e ao
longo dos séculos sucessivos, seria relembrado como um modelo de bispo,
exigente e vigoroso, que levou a frente a reforma da Igreja em tempos difíceis.
O Concílio de Trento
Esta pesquisa, busca observar as Instructiones
fabricae de Carlos Borromeu lançadas
em um período posterior ao Concílio de Trento, porém, profundamente marcado
pelas discussões ocorridas nesta assembleia conciliar. Portanto, antes de
realizar uma análise crítica sobre essa fonte e seu uso, é necessário conhecer
o cenário eclesiástico que a gerou.
O Concílio de Trento, foi convocado pelo papa Paulo III em treze de
dezembro de 1545, ele teve início aparentando uma certa fragilidade, devido as
circunstâncias difíceis e contraditórias, como a constante tensão entre
imperador e pontífice, a oposição ativa dos protestantes, um certo ceticismo da
parte das Igrejas nacionais, todos estes receios foram sentidos pela Cúria
romana (PROSPERI, 2001, p. 44-50).
No entanto, apesar das
conturbadas sessões, as mudanças de sede, as fervorosas discussões, conseguiram
criar uma personalidade para a Igreja, que influenciaria até os próximos
concílios.
O primeiro período tridentino (1545-1548) foi caracterizado por dez
sessões iniciais, nas quais foram discutidos os decretos sobre a doutrina
católica que aborda a inspiração da Sagrada Escritura, o valor da tradição, o
pecado original, a justificação e os sacramentos, em particular o batismo e a
crisma.
Após a votação sobre a justificação, Gerônimo Fracastoro, o médico do
concílio, anunciou o perigo de uma epidemia a Trento, defendendo a necessidade
de transferência da assembleia conciliar, sendo assim, esta foi transferida
para Bolonha. No entanto, de acordo com Sérgio Pagano, esse fato teria gerado
dúvidas sobre o real motivo da mudança, colocando em questão se a motivação
fosse realmente a saúde pública (PAGANO, 2014, p. 407).
Em Bolonha os poucos padres conciliares e teólogos presentes
empenharam-se em discussões que não produziram decisões concretas, porém, estas
não foram inúteis. Posteriomente as discussões sobre os sacramentos, debatidas
neste período, seriam retomadas nas próximas sessões. Esta primeira fase
concluiu-se entre poucos aplausos, com a desilusão do mundo protestante e com
algumas dúvidas no âmbito católico.
Com a morte do papa Paulo III, assume o pontificado Júlio III, que guiou
o segundo período tridentino (1551-1552). No dia primeiro de maio de 1551 teve
início a XI sessão, porém, as discussões foram retomadas na XII sessão e se
partiu do ponto em que tinham sido interrompidos os trabalhos em 1547: o
decreto sobre a eucaristia. Devido as discussões realizadas em Bolonha foi
possível definir a doutrina da presença real de Cristo na Eucaristia, contra as
teses protestantes. Na sessão XIV foi discutida a doutrina católica sobre os
sacramentos da penitência e da extrema unção. Na sessão XV foi aprovado o
decreto de prorrogação da publicação dos cânones e foi rebatida a validade do
salvo-conduto concedido aos protestantes alemães. Durante a sessão XVI, movidos
pela insegurança que a situação política da Alemanha gerou, decidiu-se
suspender os trabalhos pelos próximos dois anos, ou até que se estabelecesse a
paz nas terras alemãs.
Com a morte de Júlio III, depois do breve pontificado de Marcelo II,
assume, como novo Papa, Paulo IV. Ele, depois de ter tentado reformar a Igreja
com o trabalho de comissões reunidas em Roma, sobretudo em função
antiprotestante, teve que reconhecer que o cenário político mudava e tornava
mais difícil a reforma da Igreja, mesmo tendo sido ativo na reforma dos
costumes dos eclesiásticos e do povo, pouco pode fazer para a reconvocação do
Concílio.
Pio IV, sucessor de Paulo IV, comandou o terceiro e último período do
Concílio de Trento (1561-1563). Na Páscoa de 1561 o pontífice convocou novamente
para a cidade de Trento o Concílio, com a bula Ad Ecclesia regimen, depois de enfrentar a resistência do imperador
da França. Enquanto nos períodos anteriores, houve uma grande influência da
Alemanha, nessa terceira fase foi a França, motivada pelo calvinismo e ação de
Catarina Médici, que interferiu em várias circunstâncias.
No entanto, mesmo diante da convocação papal para a primavera de 1561 e
a presença de seus delegados em Trento, devido os vários conflitos com a coroa
francesa e espanhola, os trabalhos da assembleia conciliar tiveram início
somente em janeiro de 1562; esta fase compreendeu as sessões XVII - XXV. O
terceiro período foi aberto com as discussões em torno do Index librorum prohibitorum (Índice dos livros proibidos) de Paulo
IV.
Na XXI sessão, discutiu-se sobre temas cruciais para a reforma, quais
como a comunhão eucarística para os leigos, a doutrina sobre a eucaristia, o
sacramento da ordem, o sacramento do matrimônio, o purgatório, a invocação dos
santos, a reforma dos religiosos, as indulgências e a residência dos bispos.
Importante destacar que, no que se refere a reforma do clero, os cânones
que apresentavam a figura do bispo e do sacerdote, chamavam a vivência da cura
animarum e demonstravam a íntima união entre o sacramento da ordem e da
eucaristia. Nesse contexto, as funções pastorais do bispo, assumem uma
relevância superior àquelas jurisdicionais e administrativas, a imagem
episcopal passou a ser unida a residência e ao cuidado com os seus diocesanos.
Nessas discussões, houve grande participação e influência a figura de
Bartolomeu Martyribus, como já foi apresentado no capítulo anterior, que
influenciou a imagem de bispo que Carlos Borromeu assumiria na diocese.
A última sessão do concílio deveria ocorrer na metade de dezembro, mas
com a chegada da notícia da doença de Pio IV, ela foi celebrada entre o dia
três e quatro de dezembro de 1563.
Aprovados os decretos tridentinos em junho de 1564, no mesmo ano foi
lançado o Index librorum prohibitorum.
Dois anos depois publicou-se o catecismo, o breviário em 1568, o missal em 1570
e, enfim, a nova versão latina da bíblia, a Vulgata sisto-clementina, entre
1590 e 1604.
Os estudiosos que abordam a temática do Concílio de Trento, mesmo que
façam um juízo positivo ou negativo, não ignoram o grande impulso que os
decretos tridentinos propiciaram a vida católica nas várias igrejas locais,
tanto da Europa como em outros países. Outro aspecto relevante, é que os vários
pontífices que sucederam se empenharam para difundir os decretos e preocuparam-se
com sua aplicação.
Martina, abordando o significado histórico do Concílio de Trento,
apresenta os três motivos essenciais para considerá-lo como um fato importante
para a história da Igreja:
Esse colocou em evidência a
forte capacidade de recuperação da Igreja, vitoriosa em uma grandíssima crise;
reforçou aquela unidade dogmática e disciplinar que, mesmo minada muitas vezes
pelas forças do galicanismo e dos fenômenos afins, sobretudo se comparada a
oposta, todavia, contemporânea evolução das correntes protestantes; enfim, esse
abriu uma nova época na história da Igreja, e em certo modo determinou os
traços essenciais do século XVI até os nossos dias[2]. (Tradução
nossa).
Partindo de um juízo símile, Sérgio Pagano, destacou que o concílio
esclareceu os principais dogmas de fé, então controversos, com tal autoridade
que não deixou espaços para dúvidas, quais fossem as posições pessoais dos
teólogos ou de alguns bispos (PAGANO, 2014, p. 416). Partindo desse
pressuposto, pode-se perceber que com os seus numerosos decretos de reforma, o
Concílio de Trento reforçou a prática cristã dos sacramentos, a autoridade dos
bispos e declarou necessária a formação do clero e a exigência de uma nova conduta
moral.
Contudo, o que este tópico busca apresentar, é que Trento foi, no seu
complexo, um dos concílios mais reformadores da história da Igreja, mesmo com
suas fragilidades e limites, talvez inevitáveis pelo tempo em que foi
celebrado. Para a realização de tal objetivo, o Concílio defendeu que a
pastoral se sustentaria em dois pilares: os bispos a frente das suas dioceses e
os párocos nas suas paróquias.
Partindo dessa perspectiva, ao abordar uma temática ampla como Concílio
de Trento, bem como, as suas decisões e aplicação, é necessário compreender
como as Instructiones fabricae de
Carlos Borromeu surgiram nesse contexto, observando que dentre os vários
decretos tridentinos, não há um específico para a construção das igrejas.
Entretanto, em alguns cânones, por exemplo, os que se referem ao
sacramento da Eucaristia, os padres conciliares chamaram atenção para a
necessidade de preocupar-se com a dignidade do lugar onde se realiza os ofícios
divinos. Os cânones V e VII, emanados durante a XXI sessão, defendem a
necessidade de que as igrejas sejam mantidas em uma condição decorosa, além
disso, incentiva os bispos a repararem e restaurarem as igrejas paroquiais que
estivessem em ruínas.
Partindo desse pressuposto, é preciso perceber a importância do decreto:
De invocationes, veneratione et reliquiis sanctorum, et de sacris
imaginibus (A invocação, a veneração às relíquias dos santos e as imagens sacras).
Este foi emanado na última sessão do Concílio e, impulsionou a arte, mas também
a arquitetura. Os padres conciliares, respondendo a objeções antigas e
reformistas, precisaram que a natureza de tal veneração, afirmando que, esta
não ocorria porque se cresse que elas fossem uma divindade, mas para honorar
aqueles que as imagens representam.
Em um contexto posterior as Instructiones
fabricae, em 1582, o bispo de Bolonha, Gabriel Paleotti, confirmando o
posicionamento iconográfico da Igreja, produziu uma obra intitulada: «Discurso
em torno às imagens sacras e profanas». Essa obra traduz as disposições
conciliares tridentinas sobre a exposição de imagens sacras nas igrejas para a
veneração dos fiéis, porém, inspirado na obra Borromaica. Um texto que
respirava os temores de uma época, e por isso, concentrou sua atenção sobre os
abusos iconográficos.
Prosperi citando Paulo Prodi, afirma que uma interpretação do espírito
tridentino, em um uso didático das imagens, foi a obra composta por Gabriel
Paleotti, pois a ele deve-se o projeto de um verdadeiro e próprio índice das
imagens proibidas e daquelas consentidas. (PRODI, 2014, p. 163).
Esta obra deve ser ressaltada, porque insere-se em um contexto próximo
as Instructiones fabricae, que assim
como as indicações de Paleotti, foram parte do programa radical de
interpretação dos decretos tridentinos realizados pelo arcebispo de Milão.
Paleotti, assim como Borromeu, demonstrou através dos Discursos, o desejo de
realizar a reforma interna da sua diocese. Os encontros entre os dois bispos,
se tornaram mais frequentes especialmente no ano de publicação dos Discursos.
De acordo com Francisco Repishti, se para Carlos Borromeu o seu objetivo
era proclamar a exaltação da magnificência das igrejas em todos os seus
aspectos, uma das questões mais duramente atacadas pelos protestantes, Paleotti
destacava e legitimava sobretudo o aspecto doutrinal da pintura, procurando na
história da igreja as justificações para essas escolhas. Diante disso, pode-se
observar que o concílio obteve uma grande influência sobre a arte europeia
(NICCOLI, 2015, p. 445-480).
Mesmo diante dos decretos gerais
emanados pelos padres conciliares sobre o uso das imagens, a arte do século XVI
sentiu as mudanças religiosas, especialmente a nova pastoral.
Nesse contexto, segundo Anthony Blunt, Carlos Borromeu foi o único autor
que aplicou ao problema da arquitetura o decreto tridentino. Ele apresenta as Instructiones fabricae como algo
extraordinário, pois tratou meticulosamente todos os problemas relativos ao
edifício eclesiástico (BLUNT, 1966, p. 138).
Deste modo, pode-se dizer que o Concílio procurou dar uma resposta a
Reforma, antes de tudo no campo dogmático com os cânones específicos, sobre os
sacramentos e a sua eficácia, o valor da fé e das obras em relação a
justificação e a salvação eterna, a doutrina do purgatório, o valor da Sagrada
Escritura e do magistério da tradição, o culto dos santos. No que se refere ao
campo pastoral, a aplicação da legislação tridentina em todas as dioceses,
desde as menores paróquias até os monastérios e conventos, construiu aquilo que
é conhecido como “disciplina” tridentina (PAGANO, 2014, p. 413)
As Instructiones fabricae de Borromeu devem ser consideradas dentro
desta perspectiva histórica, marcada pelo contexto tridentino e pela reforma
protestante. A sua publicação e aplicação oferece a oportunidade de reler a
evolução de um sistema que se movimenta, pois, o arcebispo de Milão as aplicou
em confronto com uma segunda geração protestante. No entanto, as ideias da
primeira geração influenciariam as decisões do Concílio de Trento, mas também
as ações de Borromeu.
As Instructiones fabricae e a construção das igrejas
As Istructiones fabricae foram publicadas por Carlos Borromeu em Milão,
no norte da Itália. Este lugar vivenciava um problema comum, a fronteira entre
as convicções católicas e protestantes que se opunham e se relativizavam. Elas
também estavam inseridas em um mundo intermediado por algo que desaparecia e
algo que iniciava. Essa situação gerava uma sensação de incerteza e
insegurança, portanto, pode-se dizer que elas foram elaboradas em um contexto
de passagem. As suas indicações para a construção dos templos, bem como, o zelo
pelos objetos eclesiásticos definidos nos mínimos detalhes, são fixadas em
angústias e desejos inseparáveis da influência social.
Neste contexto, após um reconhecimento minucioso da Diocese de Milão
realizado por Carlos Borromeu, apresentados nos sínodos e concílios
provinciais, o texto das Instructiones fabricae et supellectilis
ecclesiasticae, composta por
dois livros, transcritos por Ludovico Moneta durante as convocações provinciais
de 1572 e 1576, revistos e traduzidos em latim por Pedro Galesino, foram
publicadas em 1577.
As Instructiones fabricae[3]
possuem duas partes, a primeira é composta por trinta e quatro capítulos que,
se referem a construção das igrejas e os objetos necessários: posição da
igreja; sua forma; os muros externos; o átrio, pórtico; o teto; o pavimento; as
portas; as janelas; a escada e os degraus da igreja; a capela mor; o altar mor;
o coro; o tabernáculo; capelas e altares menores; elementos comuns às capelas e
altares maiores e menores; os lugares e vasos nos quais são colocados as
relíquias; as imagens e as pinturas sacras; as lâmpadas e o lampadário; o
batistério; o sacrário; pia para água benta; o ambão e o púlpito; o
confessionário; a divisão da igreja; o posto para as mulheres; os campanários e
os sinos; os sepulcros e os cemitérios; a sacristia; um lugar para guardar
objetos diversos; o oratório onde às vezes se deve celebrar a missa; os
oratórios onde não se celebra a missa; a igreja das monjas; o monastério
feminino; algumas precauções sobre o edifício eclesiástico.
A segunda parte refere-se as alfaias eclesiásticas, ou seja, os objetos
necessários para os sacros ministérios, ela é composta de cinco capítulos: a
alfaia da igreja catedral; alfaia da igreja colegiada; alfaia da igreja
paroquial; a alfaia da igreja simples e da sua sacristia; homogeneidade dos
paramentos e dos ornamentos; a forma das alfaias.
Em síntese, pode-se dizer que as Instructiones
fabricae iniciam com a recomendação que a Igreja seja construída em um
lugar elevado, em todo caso que seja munida de uma escalinata de acesso para
que possa se sobrepor em relação ao seu em torno imediato (I capítulo). A
fachada deve ser adornada de figuras de santos e de modestos ornamentos. (III
capítulo). No interno, se deve dar muita atenção ao altar mor, que deve ser
elevado e haver degraus (X capítulo) e situado em um presbitério bastante
espaçoso para que o sacerdote possa realizar os ofícios divinos dignamente (XI
capítulo). A sacristia deve estar ligada com a parte principal da igreja, não
diretamente com presbitério, para que o sacerdote possa realizar uma verdadeira
e própria procissão em direção ao altar mor (XVIII capítulo). Os transeptos
podem ser transformados em capelas com outros grandes altares para funções
particulares (II capítulo). Ricos paramentos sacerdotais devem acrescentar
dignidade a função religiosa (II livro) e, porque essa deve ser
convenientemente iluminada, os vitrais da igreja necessitam em geral serem
munidos de vidros não coloridos (VIII capítulo). Tudo deve ser obtido com meios
apropriados, sem uma pompa vã e sobretudo sem nada de profano ou pagão (XXXIV
capítulo). Tudo deve estar em consonância com a tradição cristã: a planta da
igreja deve ser em forma de cruz, não circular segundo o uso pagão. (II
capítulo).
Para a execução destas prescrições, o arcebispo de Milão possuía entre
os seus colaboradores: pintores, escultores, arquitetos, musicistas, teólogos,
históricos, tradutores, linguistas, diplomáticos e muitos outros. Conforme
Fabíola Giancotti, se Carlos não tivesse convocado todos estes profissionais,
muitos edifícios não teriam sido construídos. Para esta autora, as Instructiones fabricae não são um
tratado de arquitetura, mas um dispositivo para o trabalho. (GIANCOTTI, 2010,
p. 163).
Os construtores deviam seguir as normas e as indicações para que estes
objetivos fossem atingidos. Todos estes profissionais contribuíram para a
magnificência dos edifícios sacros, e, para a manutenção do bom andamento das
obras, pois uma questão não articulada, um problema reenviado, poderia
comprometer todo o projeto. Recomendações úteis, simples no seu uso. Quem sabia
ler encontrava, indicações para a oração, para o acolhimento, quem não sabia
ler, se surpreendia diante de uma pintura, de uma estátua, que fazia refletir
sobre os mistérios da fé, além disso, reconhecia-se os lugares dos sacramentos.
Stefano Della Torre, também rebate a ideia que as Instructiones fabricae sejam um tratado de arte, mesmo que seu
conteúdo trate da “fabricae ecclesiasticae” e faça referência a escritos de
arquitetura. Segundo este autor, um
bispo redigir instruções voltadas para seu clero era algo previsível e coerente
com a ideia do bispo, que depois de Trento, passou a ocupar-se da sua diocese (DELLA
TORRE, 1997, p. 218).
O objetivo do arcebispo de Milão converge para a arquitetura enquanto
lugar de celebração litúrgica reformada pelo espírito tridentino. A leitura do
texto em si, porta a percepção de um conjunto extremamente consistente de
princípios e normas que, ao visarem a funcionalidade da ordem do culto, criam
consequentemente uma maior clareza e ordenação do espaço eclesiástico para o
desenvolvimento dos ritos. No entanto, trata-se de um texto simples, em virtude
da pouquíssima formação cultural, que a maioria do clero, possuía em 1577.
As visitas pastorais realizadas por Carlos, juntamente com outros
fatores, estão na gênese destas indicações, pois a observação sobre estes atos
induz ao reconhecimento de um dos principais objetivos da reforma da “fabricae
ecclesiasticae”: a concessão
de um mínimo de decoro as igrejas.
De acordo com Della Torre, os casos mais frequentes eram aqueles em que
o edifício sacro era absorvido, pela união entre a prática econômica e a
natureza: paredes cobertas de árvores trepadeiras, que muitas vezes, produziam
frutos; os cemitérios serviam de passagem para os animais; existiam estábulos,
poleiros, curral de porcos, tudo isto anexado às igrejas. Além disso, muitas
delas eram infestadas de ninhos de passarinhos e serviam de depósito para mercadorias
diversas ou redes de pesca. As visitas, por outro lado, ainda demonstram que
muitos antigos edifícios sacros estavam em ruínas, com o teto por terra e as
paredes em estado de alerta (DELLA TORRE, 1997, p. 218). Com base nisso,
pode-se dizer que muitas das instruções de Carlos Borromeu são referências a um
nível de gestão racional, ou seja, uma tecnologia. Porém, observá-las somente
do ponto de vista prático é, de certo modo, redutivo.
As relações das visitas pastorais, bem como, seus decretos demonstram a
situação em que se encontravam as igrejas da Diocese de Milão no século XVI. Em
suas visitas ele pode constatar como o culto, e o edifício onde este se
realizava, em algumas áreas encontrava-se em situação lastimável.
Sendo assim, pode-se dizer que para entender as Instructiones fabricae é necessário observar vários elementos,
como: as visitas, a liturgia ambrosiana, a celebração dos sacramentos, a
celebração da missa, as cartas pastorais, as indicações aos confessores.
A construção da igreja é circundada por várias questões que envolvem a
celebração eucarística. Por consequência, os pontos mais significativos deste
documento são aqueles que se referem a relação entre a nave e o presbitério, a
conformidade entre o altar e o tabernáculo. No centro das atenções é colocado o
altar, não tanto como monumental na sua forma, quanto a sua união com o
tabernáculo, pois este, era custode permanente da eucaristia. Por isso, esta
fusão é um dos elementos caracterizantes dos templos. A estrutura que acolhe,
deveria ser integrada com o que ocorre; Carlos Borromeu era defensor e guardião
da ideia de que na igreja, ocorria um milagre. Portanto, tudo que cercava a
celebração devia provocar essa percepção.
As obras dos pintores, escultores, arquitetos, pregadores, não deviam somente
recordar o milagre, mas propô-lo na sua unicidade. Essas ações surgiram no
contexto das polêmicas entre católicos e os protestantes, discutidas no
Concílio de Trento, que não aceitavam a doutrina da transubstanciação, que
defendiam a consubstanciação, ou os sacramentais - ideia calvinista. Além
disso, existiam entre os católicos aqueles que eram contrários a comunhão
frequente (PROSPERI, 2001, p. 117).
Danilo Zardin, abordando a temática da fé de Carlos Borromeu, enfatiza
que esta possuía duas finalidades: reafirmar a sua centralidade, porém,
destacando a superioridade do poder sacerdotal em relação a sociedade cristã
que, naquele contexto, absorvia a pluralidade das instituições e dos âmbitos
jurisdicionais, através da dialética entre espaço sagrado e momento profano
(ZARDIN, 2010, p. 25).
Partindo dessa perspectiva, é relevante ressaltar que na igreja, como
edifício, se reflete a hierarquia da Igreja como instituição, de tal forma que,
se distingue o povo do clero, mas também, os fiéis dos catecúmenos: determinada
pela posição do batistério. A igreja pós-tridentina se torna um espaço unitário, o lugar da celebração eucarística, e
as divisões entre suas várias partes não devem impedir ao fiel de contemplar a
celebração e de escutar a pregação.
Além do aspecto prático e litúrgico, do mesmo modo, é relevante observar
os elementos simbólicos presentes no texto,
pois algumas destas instruções, demonstram um retorno as tradições: a
planta em cruz latina, o pórtico em fachada, a cobertura em bronze, o teto
aconselhado tem como base as antigas basílicas. O convite a inspirar-se nos
vestígios dos antigos edifícios sacros, presente no fim da página introdutiva,
é um dos elementos mais caracterizantes do texto Borromaico (ACKERMAN, 1986, p.
577).
O impacto da reforma de Carlos Borromeu foi expressivo, mesmo que os
decretos não fossem prontamente executados, e a sua influência foi decisiva.
Existia uma veneração pelos antigos testemunhos de culto, em especial pelas
basílicas dos tempos antigos.
O arquiteto que percebe os anseios de Borromeu, não era um milanês, mas
de Bolonha, conhecido por suas obras de arte: Pellegrino Tibaldi, chamado
comumente como Pellegrino Pellegrini.
Partindo desse pressuposto, é válido destacar que apesar da
racionalidade que guiou a obra de Carlos Borromeu na reforma dos edifícios
sacros, deve-se recordar que seu gosto artístico foi formado em Roma como
cardeal de Pio IV. Ali, pôde ter contato com eclesiásticos e homens de cultura,
foi quando surgiu uma admiração pelas obras de Michelangelo. Conforme Della
Torre, é notório que Borromeu, ao confiar a Pellegrino a realização de tantas
obras e o escolhendo como arquiteto pessoal, pensasse nele como o homem capaz
de reviver o esplendor de Michelangelo nas terras lombardas (DELLA TORRE, 1997,
p. 224).
Conforme Della Torre Carlos Borromeu foi o principal incentivador de
Pellegrino, sendo este conhecido pela crítica como o “arquiteto de São Carlos”,
devido ao fato que, os dois personagens teriam vivenciado uma sintonia,
aproximados ora pela severa introspecção, ora pela busca comum de inovar em
contraste com modelos mundanos, ora somente pelo projeto de uma imagem
persuasiva do poder religioso (DELLA TORRE, 1994, p. 317).
As igrejas paroquiais eram objetos de cuidado dos bispos, por isso, não
se tratava somente de verificar a execução da norma, mas também de promover o
decoro e a funcionalidade necessária. Nesse sentido, Borromeu, na conclusão do
primeiro livro, afirma que: “os prefeitos das fábricas e os arquitetos, antes
de iniciar os trabalhos, consultarão todas estas prescrições, mas sobretudo
será responsabilidade do Bispo velar para que esses, na construção da igreja,
não cometam aqueles erros”[4]
(Tradução nossa).
As Instructiones fabricae se
distinguem em duas esferas de competência, deixando ao arquiteto a sua
especificidade disciplinar, enquanto se evoca ao controle da ordem eclesiástica
os aspectos práticos e, em parte, também aqueles simbólicos. Sendo assim, em
primeiro lugar, a autoridade religiosa deveria estar atenta, para evitar que
coisas profanas estivessem efetivamente dentro dos templos, o modelo deveria
ser encontrado no cristianismo primitivo. Essas indicações disciplinares,
colocava em jogo a competência do artista. De acordo com Della Torre aquilo que Carlos
Borromeu queria era o panorama da segunda Roma, reformando-a, concretizá-la em
Milão (DELLA TORRE, 1997, p. 225).
Diante de todas as questões observadas até o momento, deve-se
continuamente questionar-se se é correto utilizar a figura de Carlos Borromeu e
suas Instructiones fabricae, como um
denominador único de uma época, de uma sociedade, de um fenômeno histórico.
Contudo, existe a consciência que a sua ação reformadora encontrou fortes
resistências e muitos colaboradores, e que, no final, tornou-se aceitável pois
não refutou por completo a cultura de seu tempo, logo porque, ele era um homem
dentro de um sistema social que se transformava.
Conclusão
Ao refletir sobre o complexo da documentação acessível, oferecida pela
pastoral de Carlos Borromeu, pode haver uma tendência de transcrever em termos
antagônicos o seu governo, sem perceber ou ressaltar que ele agia embasado em
um primado da autoridade sacerdotal e que guiava uma sociedade que era cristã e
que queria permanecer assim, independente da divisão que a reforma produzira.
Portanto, mediante as leituras e observações realizadas, tomando como
base a vida e obra de Borromeu, especialmente as suas Instructiones fabricae, compreende-se aquilo que Certeau destaca,
quando afirma que “o discurso sobre o passado tem como estatuto ser o discurso
do morto” (CERTEAU, 2011, p. 51), porquanto o que circula não é senão o
ausente, enquanto que o seu sentido é o de ser uma linguagem entre o narrador e
os seus leitores, quer dizer, entre os presentes, pois, nem o arcebispo de
Milão nem as pessoas que pensaram e aplicaram as Instructiones fabricae no século XVI estão presentes.
As Instructiones fabricae operam
a comunicação dos homens de hoje com elas pela recuperação que se faz do
passado. Elas juntamente com seu autor são as imagens de uma troca entre os
vivos. Elas, como objeto desta pesquisa puderam demonstrar toda uma latência,
presente na sua idealização, publicação e aplicação, que muitas vezes não
aparece explicitamente, pois é uma interlocução que salta fora do discurso
emitido.
Nesse sentido, pode-se perceber que as Instructiones fabricae adquiriram um papel importante para a
Igreja, sobretudo para o sistema social em que elas foram publicadas, pois aparecem
como um ponto no qual se ramificam as artes, a arquitetura, a economia, as
disputas religiosas e políticas. Elas fazem parte de um contexto de trocas
simbólicas, que influenciadas pelos novos ares que fomentavam desejos de
ordenação e superação dos conflitos vivenciados no período, desenvolveram um
cenário de disciplinamento da sociedade, o que ajudou a alterar não somente as
estruturas físicas, mas as tradições e relações pessoais.
Contudo, pode-se concluir que a interferência da Instructiones fabricae na Diocese de Milão, por meio de seu
arcebispo, não se resumiu à questão religiosa, mas se estendeu ao cotidiano e
às suas subjetividades. Diante disso, percebe-se estas orientações como uma
marca que se estende no tempo, especialmente a partir das suas reedições, pois ela
passou a ser vista como referência para a liturgia e arquitetura religiosa tanto
do período como dos tempos atuais.
A trajetória aqui apresentada desejou oferecer caminhos para novas
indagações, através das questões a serem mais bem exploradas e pelos pontos
ainda não suficientemente aprofundados. São inúmeros os temas abordados, já que
Carlos Borromeu atuou em praticamente todos os setores da ação pastoral da
Igreja. Apesar das variadas dimensões deste trabalho, almejou-se oferecer não
conclusões rígidas, mas suscitar críticas e dúvidas que criem outros caminhos
para essa história contada a partir de um tempo e um lugar social.
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[1] Michel de Certeau, citando a
figura de Ormaneto, destaca que ele fez milagres na Diocese de Milão, pois
organizou um sínodo diocesano, com um programa de aplicação dos decretos
tridentinos. No entanto, Carlos Borromeu conduzia juntamente com ele essas ações
pioneiras, mesmo estando a Roma.
[2] Esso mise in evidenza la forte capacità di
ripresa della Chiesa, vittoriosa di una grandissima crisi; rafforzò quell’unità
dogmatica e disciplinare che, seppur minacciata più volte in seguito dalle
forze centrifughe del gallicanesimo e dei fenomeni affini, spicca soprattutto
se paragonata all’opposta eppure contemporanea evoluzione delle correnti
protestanti; infine, esso aprì una nuova epoca nella storia della Chiesa, e in
certo modo ne determinò i tratti essenziali dal Cinquecento ai giorni nostri.
(MARTINA, 1993, p. 254).
[4] I prefetti della fabbrica e gli architetti, prima di iniziare i lavori,
si consulteranno su tutte queste prescrizioni, ma soprattutto sarà cura del
Vescovo sorvegliare che essi, nella costruzione della chiesa, non incorrano in
simili errori. (Borromeo, 2000, p. 195)
Parabéns pelo texto, muito bom e bem elaborado, mostra a trajetória de São Carlos Borromeu, o cardeal que enfrentou grandes dificuldades numa época em que a Igreja Católica passava por uma crise com o protestantismo em oposição, o cardeal enfrentou a formação do Concílio de Trento, reformou a Igreja Católica na fé, na arquitetura e na religiosidade.
ResponderExcluirAutor: Raul Francisco Leal.
Natália, gostei muito do seu texto. Bem escrito e de foma didática mostra a as instruções de São Carlos Barromeu para a arquitetura das igrejas. Gostaria de saber de você se no Brasil existe alguma igreja erguida seguindo de modo direto essas instruções. Gostaria também de sugerir o uso de imagens de igrejas construídas com base nas as instruções do santo.
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