Benedito Carlos Costa Barbosa
Doutorando em
História das Ciências e da Saúde (Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz)
Introdução
A
história da Amazônia foi marcada pela dizimação dos povos indígenas durante o
processo de colonização. As doenças
trazidas pelos europeus, entre as quais, as bexigas (varíola) se propagaram para o Grão-Pará
desde o século XVII e se intensificaram ao longo dos séculos XVIII e XIX, causando diversos
problemas socioeconômicos e demográficos, sobretudo nos povos indígenas, como
assinalam as cartas trocadas entre autoridades coloniais e metropolitanas, e os
diários dos viajantes que estiveram na
região amazônica. A propagação da doença certamente foi facilitada pela
precária estrutura médica e sanitária, principalmente na parte mais afastada de Belém, isto é, nas vilas, no sertão e na área de
fronteira, atingindo os povos indígenas principalmente após o estabelecimento
do Diretório do Índios, em 1757.
No rastro das políticas de colonização implantadas na região amazônica,
a partir da segunda metade do século XVIII, este artigo busca investigar o
contágio e o impacto das bexigas no Grão-Pará no período de 1755 a 1820, momento
em que houve um crescimento dos surtos epidêmico tanto na cidade de Belém, quanto no
interior, no sertão e na fronteira amazônica. O artigo será analisado com base
nos documentos coloniais do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) e Arquivo
Público do Estado do Pará (APEP). Também utilizo obras que contem informaçoes
etnográficas das regiões visitadas pelos naturalistas e missionários que
permitem entender um pouco dos aspectos socioculturais da Amazônia no contexto
das epidemias. Portanto, essas fontes tecem informações importantes, ainda que de forma limitada, sobre a propagação e a
consequência das epidemias de bexigas nas terras paraenses.
O contágio das bexigas na cidade de Belém
A cidade
de Belém do Grão-Pará, fundada
no século XVII à margem
da baia de Guajará,
gradativamente cresceu em torno do Forte do Presépio, construção feita sob as
ordens de Francisco Caldeira Castello Branco para demarcar a presença lusitana
no norte da América portuguesa. O espaço de ocupação que se formou nas imediações
desse forte constituiu a freguesia da Sé, com casas residenciais, prédios
administrativos, igrejas e estabelecimentos comerciais. Com o processo de
povoamento, surgiu a freguesia de Sant'Anna da Campina, e posteriormente a
freguesia da Trindade, mas esta somente no início do século XIX, agregava parte
da população menos abonada na zona periférica. Nesse espaço, homens, mulheres e
crianças conviveram com os problemas
de Belém no século XVIII e começo
do XIX, sobretudo com a propagação de
variadas doenças endêmicas e epidêmicas, como as bexigas e sarampo, duas
doenças, que durante muito tempo constituíram flagelos na região amazônica.
No
governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1750-1758) houve dois
contágios de bexigas e sarampo, que fizeram estragos entre a população indígena
e africana na condição de livre
e escravizada. No governo de Fernando da Costa de Ataíde Teive (1763-1772)
os contágios das doenças continuaram, sendo mais forte no interior, sobretudo
na vila de São José do Macapá (FEREEIRA,
2007: 49). Em 1776, uma grande epidemia de bexigas vitimou “mais de mil e tantas pessoas”. Atingiu índios, escravos, soldados e outras
pessoas que residiam nos diferentes espaços da cidade.
Ainda no mesmo ano, o governador João Pereira Caldas preocupado com a
diminuição no número de soldados mortos pela epidemia comunicou o secretário de
Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro “contudo ao presente se
acham diminuídos de algumas praças pertencentes ao Estado completo, pelos
muitos soldados, que tem morrido da lamentável epidemia de perniciosíssimas
bexigas, que se tem aqui padecido, e está ainda padecendo com grande força”
(AHU, Cx.76, D. 6350). Provavelmente, mais soldados morreram. Nos mapas
inclusos na carta constam 44 soldados
hospitalizados, sendo 22 soldados referentes as Praças do Regimento de
Infantaria do Macapá e 22 soldados
referentes as Praças
do Regimento de Infantaria da cidade
do Pará (AHU, Cx.76, D. 6350).
Essa
epidemia vitimou sobretudo índios, negros e soldados, não somente em Belém, mas em várias partes
do Grão-Pará, pois a doença grassou para o interior
e o sertão amazônico. A
documentação analisada não permite saber o tempo da duração do contágio. É
provável que se prolongou por muito tempo em Belém. No começo de 1778, o
governador João Pereira Caldas noticia o secretário de Estado da Marinha e
Ultramar, Martinho de Melo e Castro, a “ocorrência de um cruel contágio
de bexigas, e de mais algum incomodo
de parte destas gentes, que fez, e havia feito
indispensável a fiel execução da soberana ordem de Sua Majestade” (AHU, Pará,
Cx. 79, D. 6536). As autoridades de Belém, tomavam providências, mas nem sempre
foi possível evitar o contágio. A doença se disseminava de maneira funesta,
causando vários danos entre a população, principalmente mortes de indígenas e
escravizados que ocupavam mão de obras
nos serviços coloniais.
Em 1793 houve
outro contágio em Belém que se estendeu, segundo Artur Vianna,
até o começo de 1800, não diretamente, mas em sucessivos surtos. O primeiro
surto começou no mês
de junho e durou até 1794. O governador Francisco de Souza Coutinho tomou
algumas providências, mas não conseguiu conter
o avanço da peste que rapidamente tomou conta da cidade, vitimando muita gente, “com uma porcentagem atroz sobre os
índios e mestiços; os batalhões milicianos, em sua quase totalidade compostos
destes indivíduos, sofreram um tal ataque que a bem dizer, perderam todo o seu
efetivo” (VIANNA, 1975: 39, 44).
Segundo o substituto do Físico-Mor do estado do Grão-Pará ao tratar da inoculação das bexigas, “por mais de uma vez tem
sofrido horríveis contágios, dos quais o último de 94 como é constante, foi dos
mais espantosos, pela grande mortandade que houve” (AHU. Cx. 124 D. 9561). As cenas de tristeza causadas pela
mortandade foram lembradas no primeiro Círio de Nossa Senhora de Nazaré em
Belém, ocorrido em 8 de setembro de 1793. No decorrer da procissão da santa, os
romeiros ao passarem pelo cemitério se depararam com a lembrança da triste
epidemia iniciada a pouco tempo na cidade. Este cemitério, talvez seja o mesmo
construído no governo de João Pereira Caldas para enterrar os mortos da
epidemia de 1776. O medo,
provavelmente, estava presente na memória
do povo paraense que após vinte anos enfrentava os problemas de mais uma
epidemia de bexigas (VIANNA, 1904: 236-237).
Após
ceifar a vida da população, de maneira funesta, principalmente indígenas e
mestiços, a doença deu uma trégua, diminuindo temporariamente o contágio no inverno de 1795, mas retornou pouco tempo depois,
no verão de 1796 (VIANNA, 1975: 42). Em fevereiro
de 1797, o governador e D. Francisco Maurício de
Sousa Coutinho noticiou o secretário de
Estado dos Negócios Estrangeiros e Guerra, Luís Pinto de Sousa Coutinho, sobre o surto de bexigas que a meses
iniciou na capital
paraense. Embora preocupado, relata que, “até agora não me consta que tenha passado além da cidade e nela é disposto que termine ao
presente por ser chegada a estação das águas que comumente faz cessar este, e
outros flagelos semelhantes” (AHU, Pará, Cx. 108, D. 8538).
O contágio supostamente se estendeu até 1798, momento
em que os oficiais da Câmara
de Belém preocupados com o contágio das bexigas e de outras doenças que tomavam
conta da cidade solicitaram a rainha D. Maria I a nomeação de dois médicos para
prestarem socorros a população de Belém (AHU, Pará, Cx. 113, D. 8788). A
epidemia, igualmente a ocorrida nos anos de 1793-1794, vitimou muita gente.
Segundo Valetim Antonio de Oliveira e Silva, secretário do Estado, “sendo
presente a Sua Majestade a grande e lamentável mortandade que tem causado
nos Povos deste
Estado a cruel epidemia de bexigas, não só nestes
cinco annos em que incessantemente os tem perseguido,
mas em outros anteriores” (VIANNA, 1975: 43-44).
Após a epidemia que abateu
a população belenense no final do século XVIII, certamente
outros casos surgiram no início do século
XIX, posto que houve uma preocupação do soberano português com a inoculação no
Grão-Pará. Domingos Correa Diniz que trabalhou como substituto do Físico-Mor do Estado, em cópia do parecer que dirigiu sobre a inoculação
das bexigas em fevereiro de 1803, argumentou: “Há pouco mais de dois anos que estou nesta capital
com o emprego de Médico substituto do atual Físico-Mor do Hospital Real, neste
espaço de tempo só em Novembro do
ano próximo passado tive ocasião de assistir a quatro pessoas bexigosas, que
vindo infectadas do Maranhão, estavam em São Jozé retiradas por ordem de V.Exª” (AHU, Cx.124, D. 9561).
Os
trabalhos de inoculação foram intensificados no final do século XVIII e início
do XIX, sob ordens do governo português que mandou inocular
principalmente os meninos
índios e negros, certamente por serem as maiores vítimas do contágio. O
comércio negreiro, nesse momento, estava com todo vigor entre as costas
amazônica e africana. De acordo com Arthur Vianna, no ano de 1806 houve
novamente um surto da doença, consequência da chegada do navio Sertório no
porto de Belém. O navio trazia escravizados contaminados pelas bexigas.
Consultando a trajetória do navio Sertório no slave voayages percebi uma grande diferença entre os números de
escravizados embarcados e desembarcados. Provavelmente que os números estejam
relacionados aos contaminados indicados por ArthurVianna. Depois de perder parte dos escravizados em viagens,
a embarcação aportou em Belém trazendo escravizados “vindos da Costa, d’Africa
Occidental, principalmente o último denominado Sertorio, que não, obstante ser logo acautelado e posto
de quarentena na Ilha do Arapiranga, para ahi
se purificar e promover como era necessário o curativo dos muitos enfermos
(VIANNA, 1975: 45-47).
Ainda
que o governador José Narciso de Magalhães de Menezes tenha tomado
providências, o contágio foi inevitável e em poucos dias a doença atingiu a cidade. Os escravizados, segundo o
governador, já entraram doentes e infeccionaram a cidade, “que imediatamente fiz passar - para a Fazenda Pinheiro” (VIANNA, 1975: 45-47).
Após o contágio de 1806 em Belém, embora a historiografia não faça
referência a outros casos de bexigas à região paraense, certamente houve outros
casos que não foi possível identificar nas fontes consultados. Treze anos após
o contágio do navio Sertório, outra epidemia tomou conta da cidade, conforme
Arthur Vianna, provocada pela embarcação de escravizados provenientes do
continente africano. Em abril de 1819, a doença ressurgiu em Belém. Em razão da
estação do inverno, a doença não teve um crescimento significativo, mas de
junho em diante, período em que as chuvas
cessam com a chegada do verão, a doença se propagou de maneira epidêmica
na cidade. Belém ficou em estado de calamidade “minada de doentes em
todos os bairros”. Possivelmente
dois terços da população foi afetada pela epidemia (VIANNA, 1975: 46-48).
Arthur
Vianna, estudante de medicina que se arriscou a esboçar um estudo sobre as
epidemias que assolaram o Pará, aponta que são registrados do mês de abril a 10
de setembro de 1819, 2.200 mortes. Para Vianna, baseado no censo, argumenta “se
levarmos em conta que um recenseamento de 1801 dera para Belém 12.500 habitantes,
constataremos que sucumbiu quase uma sexta parte da população” (VIANNA, 1975:
50). O naturalista Spix e o médico Martius, alemães que viajaram para o Brasil
no início do século XIX, na expedição cientifica no período de 1817 a 1820, visitaram várias
regiões brasileira. Em Belém registraram o contágio das
bexigas e de outras doenças exantemáticas. Sobre as bexigas, argumentam
“grassava juntamente ao tempo de nossa estada, constituindo maligna epidemia,
que no auge sacrificava diariamente 30 a 40 pessoas, e durante meio ano
arrebatou mais de 3.000 indivíduos, de todas as raças e condições” (SPIX e
MARTIUS, 1976: 20, tomo 3). Os serviços municipais de enterramento foram
negligenciados tanto pela Câmara de Belém, quanto pelos coveiros, este não
colocavam os cadáveres “em sepulturas pouco profundas”. Essa falta de cuidado
do poder público para com os mortos, vitimados pela epidemia, certamente
comprometeu a saúde dos moradores, principalmente os que moravam
em áreas próximas
do cemitério, pois dele “exalava um fétido insuportável” (VIANNA,
1975: 48).
Embora
sem dados estatísticos sobre o número de mortos nas diversas epidemias
ocorridas durante a segunda metade
do século XVIII
e início do XIX, de um modo geral, pode- se considerar grande a mortandade
em Belém. Baseado no quadro I, que
mostra um indicativo dos dados populacionais no período de 1765 a 1820, percebo
que o número de habitantes de Belém
desde a segunda metade do século XVIII cresceu, com exceção em alguns anos, por
conta certamente das epidemias de bexigas na cidade. Entre os anos 1777-1788
existe um decréscimo nos dados demográficos, período
que coincide com a epidemia
propagada nos anos de 1776-1777 que atingiu não somente
Belém, mas o interior e o sertão. Entre os anos 1788- 1792 a diferença populacional também pode estar relacionada
com outras epidemias ocorridas que embora não seja possível verificar na
documentação, é pronunciada por Alexandre Rodrigues Ferreira, quando esteve na
região. Entre os anos de 1792-1797-1801 não houve decréscimo populacional, pelo
contrário houve uma aumento, mas muito lento, considerando uma média de cinco anos a diferença entre os anos.
Esse baixo crescimento populacional está relacionado diretamente com as
consequências das funestas epidemias
que abateu a população de Belém no período de
1794-1800. Mas, a peste não ficou somente em Belém, propagou-se também
para o interior (missões, vilas e povoados) até o sertão amazônico e área de
fronteira, causando também sérios problemas para a população, como mostrarei na
próxima parte.
Quadro
II: População do Grão-Pará
Ano
|
Belém
|
Grão-Pará
|
1765
|
33.565
|
|
1777
|
8.028
|
|
1778
|
10.074
|
54.914
|
1782
|
55.315
|
|
1783
|
6.978
|
|
1787
|
||
1788
|
10.620
|
|
1792
|
8.573
|
|
1797
|
11.745
|
70.604
|
1801
|
12.500
|
80.000
|
1816
|
94.120
|
|
1820
|
24.500
|
68.190
|
Fonte: AHU. Pará (Avulsos), cx: 76, doc.6368 (1777); SALLES, 2005: 96;
AUGUSTO, 2007: 47-
48. CDC.
O
contágio das bexigas no vasto interior e nos confins do sertão
A
política pombalina culminou com a expulsão dos jesuítas da região amazônica e
retirou dos missionários a tutela dos índios entregando aos diretores. Segundo
a carta régia de 6 de junho de 1757, os aldeamentos que apresentassem condições passariam a categoria de vilas ou lugares
com a substituição dos nomes indígenas pelos nomes portugueses (RODRIGUES,
1968). Esses povoados pombalinos passaram para administração dos diretores, que
exerceram importante papel na seleção e utilização da mão de obra indígena destinadas aos trabalhos na região.
Gradativamente as aldeias tornaram-se vilas e lugares. No período de 1755 e
1759, o governador do Grão-Pará Francisco Xavier de Mendonça Furtado implantou nas Capitanias do Pará e Rio Negro, muitas vilas e
lugares, que provocou grandes modificações na distribuição da população.
Colonos e indígenas deveriam se estabelecer no mesmo espaço geográfico, com o
objetivo de integrarem-se no universo da colônia. As vilas e lugares seguiam aos propósitos de povoamento, de irradiação da cultura portuguesa e de ordenação de índios
e colonos segundo as regras da metrópole (ALVES,
2010: 24).
As
transformações socioeconômicas e culturais, consequências das políticas
pombalinas, contribuíram para o contágio de bexigas ao longo da segunda metade
do século XVIII e início do XIX, que afetaram mormente, os povos indígenas
dispersos nas aldeias, nas vilas e nos povoados. Segundo Carlos Fausto, após a
expulsão dos jesuítas, em 1757, as epidemias voltaram a assolar a região
amazônica, de 1762 a 1800 (FAUSTO, 2001: 50). No extremo norte da Amazônia, as bexigas se disseminaram nas terras do
Cabo Norte,1 especialmente no contexto da construção
de São José de Macapá (1764-1782). Ainda em fevereiro de 1765, José Antônio Salgado,
inspetor da obra de fortificação, comunicou Fernando da Costa
de Ataíde Teive, governador do Grão-Pará e Maranhão: “no mapa incluso
verá V. Exª todos os operários que trabalham
nesta fortificação e os doentes que há tantos índios como pretos e todas as
províncias que tem havido” (VERGOLINO-HENRY e FIGUEIREDO, 1990:77 e 78). As doenças constituíam um problema para o andamento da obra, sobretudo pelas bexigas e sarampo que abateram os operários nas
dependências da obra e nos espaços provedores de matéria prima. Ainda nesse
mês, o comandante da Praça de Macapá, Nuno da Cunha de Atayde Verona
relatou ao governador do Grão-Pará a situação dos trabalhadores: “com incansável cuidado e vigilância, continuo no trato e com modo dos cento e setenta e quatro
pretos do Senado da Câmara dessa
cidade, sem que possa conseguir o evitar-lhes as doenças e as fugidas
achando-se no hospital 48 e tendo falecido nele um e ausentes 17” (VERGOLINO-
HENRY e FIGUEIREDO, 1990: 79 e 80).
Em março de 1765, o contágio da bexigas juntamente com o
sarampo comprometeu o estado de
saúde dos trabalhadores, como mostra Atayde Verona, em carta ao governador do
Pará: “este grande número de doentes não só pretos, mas também de índios da
fortificação, da serraria e Anauerapocú, com alguns soldados, me obrigou indispensavelmente a lhe fazer mais
uma casa de palha”, para separar os doentes de bexigas dos doentes de sarampo que vieram em calcetas dessa cidade (VERGOLINO-HENRY
& FIGUEIREDO, 1990: 80). No segundo semestre de 1765, 36 trabalhadores encontravam-se no hospital,
consequência dos duros trabalhos e das inúmeras doenças que imperavam na
região. O cenário de enfermidade não
se diferenciou anos depois, mais precisamente em 1767, que mostra o aumento no
número de mortes e doentes: 24 no hospital, 58 falecidos e 90 ausentes. Os
falecidos, provavelmente de doenças.
(VERGOLINO-HENRY e FIGUEIREDO, 1990: 90).
O
contágio das bexigas, igualmente outras doenças, decerto estava relacionado com
as péssimas condição de trabalho, a precária alimentação servida aos operários
e a insalubridade “atribuída ao ritmo
das marés e a proliferação de insetos”, transmissor de doenças. Os pântanos
contribuíam para a insalubridade do clima e as “sessõens” vitimavam grande
número de trabalhadores indígenas, desnutridos e sem imunidades às novas
doenças (ACEVEDO MARIN,1998: 67). Macapá situava-se em uma região insalubre que
tornava propício às doenças, como bexigas, sarampo, diarreias
e febres catarrais (BRITO, 1998: 131). Os trabalhadores, não raramente, chegavam
doentes em Macapá, sobretudo os indígenas. Alguns vinham de vilas e povoados que se estendiam ao longo do rio Amazonas e
seus afluentes, que abrigavam antigas aldeias. Outros vinham de lugares
distantes de Macapá demonstrando que o
espaço geográfico não impedia a requisição de índios (APEP, cód:153, doc.38,
ano.1765). Os povoados pombalinos, independentes da distância, constantemente
sofriam surtos de bexigas. Dessa maneira, os povoados,
as condições de trabalho e a insalubridade, sem dúvida, explicam parte da disseminação de inúmeras
doenças como as bexigas, que contribuíram para o adoecimento e a dizimação de
trabalhadores da fortificação.
O
contágio das bexigas não se restringiram ao espaço da construção da fortificação militar, mas grassou para outras partes da Vila de Macapá.
Em maio de 1778, Antônio
José em oficio para João
Pereira Caldas por meio de um requerimento solicitando “três índias para [...]
colher uma avultada lavoura de arroz para comprar as minhas despesas, e por
alguns dos ditos escravos estarem enfermos das bexigas” (APEP, cód. 326 In: Relatos
de Fronteira, 160). Em Julho do ano seguinte, um
ofício de Manoel Gama Lobo Almada, Sargento-mor comandante da
Fortaleza de Macapá enviado para Governador do estado do Grão-Pará e Rio Negro
relata sobre o estado de saúde dos vinte negros que vieram para Macapá, entre
os escravos doentes, “veio com bexigas confluentes, de que já faleceu” (APEP, cód. 195. In: Relatos de Fronteira,
143).
Apesar
das informações sobre o contágio na vila de Macapá, não se tem dados
estatísticos sobre o número de mortos. Alexandre
Rodrigues Ferreira, baseado
nas memórias de Teodósio Constantino Chermont, menciona em seu diário
que no governo de Fernando
da Costa de Ataíde
Teive a epidemia que abateu
o Estado foi mais acentuada
nesta vila do que em Belém.
O número de habitantes na vila era menor do que na capital
paraense, logo o estrago foi maior em Macapá (FERREIRA, 2007:521). Ainda na
região do Cabo Norte, as bexigas
atacaram também os moradores de Mazagão, antiga aldeia de Santana. Em 1770 esta aldeia foi elevada à condição
de vila e visava
proteger a região
da invasão de estrangeiros, sobretudo
os franceses, com quem os portugueses divergiam o Cabo Norte. Em 1776, o governador João Pereira Caldas comunica o comandante o provedor
comissário da Vila de Mazagão sobre
“a deserção dos Índios, que aí se experimenta na ocasião presente, pode ter
alguma desculpa pelo pavor que justamente lhes deve causar a geral epidemia de bexigas, que em todo o Estado se está
experimentando, digo se está padecendo e tem já feito uma lamentável, e
consideradíssima derrota” (APEP, cód. 306, doc. 181)
Na
região das ilhas e dos furos, situada entre no interflúvio dos rios amazonas e
Xingu, o contágio atingiu várias áreas. Em 1758 a missão Aracurá, instalada em
1653, tornou-se vila de Portel. No ano seguinte uma epidemia de bexiga se propagou na vila,
causando vários transtornos nos moradores, como o atraso na remessa
de índios ao serviço. Segundo
José de Sá Lemos: “com a brevidade que desejava por se acharem
refugiados no mato os moradores
desta povoação, temerosos das bexigas que bastantemente os tem
perseguido, este o motivo porque a
mais tempo não tenho feito a remessa do número de índios” (APEP, cód. 95 doc. 16).
Na
vila de Carrazedo, antiga Aldeia de
Arapijó, localizada na margem direita
do baixo Amazonas, na região de Gurupá, a
doença atacou os índios. Em 1758, com a implantação das políticas
pombalinas, a aldeia de Arapijó, administrada pelos missionários franciscanos
da Piedade, foi elevada à categoria de vila, sob a jurisdição da Vila de Gurupá
próximo ao arquipélago do Marajó. Em 1762, as bexigas atacaram alguns índios da
vila (APEP, cód. 118, doc. 06). Outra correspondência endereçada do Rio Gurupá,
de Bazilio José de Almeida para José de Nápoles Telo de Meneses, governador do
Grão-Pará dava conta sobre o hospital dos bexigosos. Segundo o remetente, “em
dia oito deste presente mês me foi preciso para bem de minha jornada tomar uma
canoa pequena de trinta e três palmos [ir ao] recinto de Hospital de bexigosos
pois não querendo o dito capitão [Antonio Albino] que em seu recinto ficasse o
dito doente” (APEP, cód. 65, doc.127, ano.1780)
Em
Breves também houve casos de bexigas, tratava-se de um doente da expedição de
Spix e Martius. Os viajantes
em suas andanças
pela região das Ilhas e dos Furos diagnosticaram
que o piloto da embarcação que os conduziam apresentava os sintomas da varíola.
De acordo com os viajantes, “passava do meio-dia, quando uma chuvinha fina e
nevoeiro começaram a encobrir-nos o singular
arquipélago, e ao mesmo tempo o nosso piloto se queixou de mal-estar, aterrando-nos secretamente, ao
reconhecimento nele sintomas de varíola”.
Diante da situação que o piloto apresentava, “demos-lhe ordem de deitar-se
embaixo, no convés e tomamos a direção do leme (SPIX e MARTIUS, 1976: 67, tomo
3). Os naturalistas, sem condições de tratarem o doente, navegaram até chegarem
no dia 3 de setembro de 1819 na vila de Breves (Engenho dos Breves) para trocar o dito piloto
que padecia da varíola. Após deixarem o doente,
partiram para outras vilas da região das ilhas e furos. Depois de oito meses, ao retornarem à vila
de Breves tiveram conhecimento da morte
do piloto. Na região do rio Xingú, segundo Spix e Martius, as bexigas,
juntamente com o sarampo constituíam as únicas doenças endêmicas agudas, que
atacavam os indígenas (SPIX e MARTIUS, 1976: 97, tomo 3).
A doença
também se disseminou à região do Rio Negro, localizada no oeste amazônico. Com a intenção de colonizar e ao mesmo tempo afastar a ameaça estrangeira
na fronteira com os domínios espanhóis, o governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, criou em 1755 a
Capitania do Rio Negro, desmembrada da capitania
do Pará e formada pelas terras que hoje equivalem aos estados
do Amazonas e Roraima (ANDRELLO,
2010: 111). A capitania do Rio
Negro tornou-se base para a ocupação portuguesa no noroeste da Amazônia. Várias
vilas foram criadas com esse
objetivo. Ao longo dos anos vilas e
aldeias indígenas sofreram severamente com a propagação das bexigas. Na vila de
Olivença houve o contágio das bexigas. Em 1759,
a antiga missão jesuítica São Paulo dos Cambebas empreendida pelo padre Samuel Fritz no
Rio Solimões, na Capitania do Rio Negro transformou-se em vila.
Em 1763, a doença se proliferou
matando muitos índios, como atesta Fernando Correa Pestana em carta para o
governador da Capitania do Grão-Pará. Conta que, chegou “a esta vila em quatro de janeiro e venci o fim da viagem com muito trabalho causado da peste das bexigas”. Nessa epidemia,
“morreram cinco pessoas de minha casa e quatro índios da vila, as mais escapa
[corroído] da morte, mas não da bexiga, só a canoa grande escapou
do fatal contágio
por que [corroído] o primeiro índio em que seu tal contágio os mais escaparam
pela bondade de Deus” (APEP, cód. 128, doc.41).
Na
Vila de Barcelos, antigo aldeamento indígena de Mariuá, também se disseminou o
contágio das bexigas. Em 1758, este aldeamento missionário, sob administração
dos missionários carmelitas foi elevado à categoria de Vila, com o nome de
Barcelos. Nela, “as bexigas que tanto pegam e tantos estragos fazem nos índios,
particularmente nos de há pouco descidos, pelo ordinário se tratam na
enfermaria geral”. Nessa enfermaria, “estão os enfermos que não são de
enfermidades contagiosas e que se arriscam por isso a adquirirem dentro do
hospital um contágio com que não entraram nele” (FERREIRA, 2007: 214).
Em Airão, antigo povoado de Santo Elias do Jaú, também
houve o contágio das bexigas. Este povoado, localizado na margem direita do Rio
Negro, foi fundado em 1694 pelos missionários
mercedários e carmelitanos que adentraram o oeste amazônico para evangelizar
primeiramente os índios Tarumã e
posteriormente outros grupos indígenas que migraram para a região nos séculos XVII e XVIII. A ação evangelizadora dos carmelitanos foi mais duradoura e contribuiu para o crescimento gradativo do povoado. Em 1759, Santo
Elias do Jaú ascendeu a condição de Lugar com a denominação portuguesa Airão,
exigência de Joaquim de Mello e Póvoas,
governador do Rio Negro, para atender os interesses das políticas pombalinas. O
estabelecimento da política pombalina acirrou
as guerras com os índios que não se submetiam a colonização na região do
Rio Negro. Deste modo, alguns grupos indígenas migraram de Airão, principalmente para o alto Rio Negro e
colônias espanholas nas imediações da região, o que certamente
provocou a decadência de Airão (LEONARDI, 2013: 25-32).
Os povos indígenas de Airão, constantemente
sofriam com doenças. Alexandre Rodrigues Ferreira quando passou pela região do Rio Negro, descreveu
os repetidos contágios das bexigas e do
sarampo que concorreram à depopulação. Segundo este naturalista, “os repetidos contágios de bexigas e de sarampo têm
diminuído muito a sua população. Conta-se que constando de 37 pessoas a família
do principal Ambrósio de Santa Ana, só ele e um filho seu escaparam da morte em
um desses contágios”. Argumenta ainda que, “há 12 anos a esta parte, que tem quatro descimentos”, sendo que “o primeiro deles constou de 150 almas da nação aroaqui, das quais têm morrido umas e outras
se ausentaram”, já “o segundo
descimento constou de 37
almas da mesma nação, e delas ainda se conservam 15 (FERREIRA,
2007: 304). Os indígenas habitantes em Airão, assentados na margem direita do Rio
Negro, foram assolados por epidemias
nos séculos XVII e XVIII, sobretudo pelas bexigas que durante anos fizeram
estragos na região do Rio Negro.
A
aldeia Coari, no Rio Solimões, em 1759 tornou-se Lugar de Alvelos2, que
também sofreu o contágio das bexigas. O ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio registrou que “tem tido esta povoação
argumento em vários
descimentos; mas no ano presente
tinha padecido grave diminuição, por causa do contágio das bexigas, morrendo
dele muitos índios,
e desertando outros para os
matos, como costumam nessas ocasiões” (SAMPAIO, 1985: 156-157). Anos mais
tarde, os viajantes Spix e Martius ao passar por Arvelos, fazem referência as
bexigas. Segundo os viajantes, “as bexigas e muito recentemente febres intermitentes malignas, causadas pelo transbordamento do lago, dizimam de quando em quando a população, que sem o
socorro médico, ainda mais depressa sucumbe (infelizmente, em toda a província
do Rio Negro não há médico diplomado)” (SPIX e MARTIUS, 1976:155, tomo 3).
Ega foi originalmente a missão Tefé ou Santa Tereza de Tapé, fundada em
1694 pelos carmelitas. Em 1759, Joaquim de Melo e Povoas, governador do Rio
Negro, elevou a vila a condição de lugar, localizado no Rio Solimões. O lugar
também é lembrado pelos naturalistas Spix e Martius, quando estes estiveram na
região do Rio Negro: “antes, haviam as bexigas despovoando o lugarejo, assim
como, desde 1803, as febres intermitentes anualmente ali reinantes” (SPIX e
MARTIUS, 1976: 162, tomo 3).
Mas o contágio das bexigas nos século XVIII e XIX não ficaram
somente nesses lugares citados, outros espaços do Rio
Negro, sem dúvida foram atingidos. As autoridades
se preocupavam com a propagação de doenças, principalmente as bexigas, que
tantos problemas causavam não somente à população, mas ao processo de
colonização. De acordo com os viajantes, “o governador desta última província,
assustado pelo boato de perigosa epidemia de bexigas, que grassaria na província inferior,
havia posto ali um destacamento de soldados da milícia, com o encargo de exercer estrita vigilância sobre a entrada de
quaisquer viajantes naquelas alturas (SPIX e MARTIUS, 1976:104, tomo 3).
Além
do interior, o sertão, sobretudo a área de fronteira
do Grão-Pará tornou constantemente uma preocupação para colonização portuguesa. Os limites fronteiriços do ponto de vista
político e geográfico da Amazônia, ainda não estavam
totalmente definidos e mudavam
constantemente. Desde os início da ocupação e do povoamento, a Coroa portuguesa
procurou demarcar a região
e defendê-la de incursões estrangeiras no estuário brasileiro. Realizou vários
tratados e acordos, especialmente com os espanhóis e franceses. Antes da
colonização, o continente americano já havia sido dividido entre portugueses e
espanhóis pelo Tratado de Tordesilhas
(REIS, 1960: 23). Apesar dos espanhóis receberem a maioria das terras
amazônicas, houve certo descaso com a região, ficando a cargo dos ingleses e
holandeses a tarefa de iniciar a exploração. A ocupação da Amazônia, dessa
maneira, esteve estritamente relacionada com as invasões estrangeiras, pois não
participaram do acordo de Tordesilhas (REIS, 1949: 17).
As
ações dos colonizadores trouxeram serias consequências sociais para os
habitantes da região, tais como migração, fugas, mortes e doenças, como as
bexigas que se propagaram no sertão e área de fronteira. Na fronteira do Pará
com o Tocantins ocorreu o contágio da varíola, especialmente no interflúvio dos
rios Pacajá-Tocantins com os índios Apinajés que foram contatados com a sociedade de maneira permanente, somente em 1797.
Vinte anos depois desse contato, os Apinajés
foram assolados pela varíola que grassou a região (FAUSTO,
2001: 51). Na fronteira
com o Maranhão, também houve a disseminação das bexigas. Spix e Martius, quando de suas passagens pelo Maranhão, observaram que São Luís, da mesma forma que toda
a ilha, estava livre de doenças endêmicas e epidêmicas, com exceção das bexigas
(SPIX e MARTIUS, 1976: 247, Tomo 2). A população maranhense, igualmente a
paraense, desde o século XVII foi acometida pelas constantes epidemias de bexigas. Mário Meireles, baseado
em Teodósio Constantino Chermont, argumenta que entre 1724 a 1776, a
doença fizera praticamente endêmica em todo o Estado, e não apenas em São Luís. Em 1784
o governador José Teles da Silva montou postos para atender soldados
contaminados pela peste na cadeia pública. Em 1787, outra epidemia tomou conta da cidade, causando muitas mortes
(MEIRELES, 1994: 212, 177). No século XIX, novas epidemias ocorreram nas terras
maranhenses. Em 1817 a doença se disseminou de
Caxias para o oeste atingindo os índios Apinajés, que foram
drasticamente devastados (HEMMING, 2009: 247).
É
muito provável que alguns contágios de bexigas nas terras paraenses ocorreram
com os doentes que entraram pela fronteira do Grão-Pará com outras capitanias
portuguesas ou espanholas. As autoridades
coloniais preocupavam com a militarização da
área não somente pelos constantes surtos de doenças, mas por qualquer
motivo que colocasse em risco a segurança da região. Os moradores das
fronteiras (indígenas, escravizados, mocambeiros) regularmente cruzavam as
fronteiras coloniais em fugirem ou deserção, práticas que concorreram para o
contágio de doenças. É importante lembrar que, o comércio negreiro tornou-se
também importante para o contágio de bexigas no Grão-Pará. As epidemias vitimaram, principalmente os
africanos e indígenas na condição de livres e escravizados que atuavam em várias frentes
de trabalhos no interior e sertão amazônico. Dessa maneira, a doença
causou vários problemas, sobretudo a falta de mão de obra, que agravou
fundamentalmente o processo de colonização, questões que serão analisadas na
próxima parte.
O
contágio e os meandros da colonização
O contágio
das bexigas trouxe graves consequências à região, não apenas pela redução da população
do Grão-Pará que morreu e fugiu para as matas, mas pela carência da mão de obra suscitada. Os sucessivos contágios
comprometeram seriamente o crescimento econômico da região amazônica, pois sem
pessoas suficientes, com frequência os trabalhos paralisaram. Por essa razão,
as epidemias ensejavam gravíssimos problemas de abastecimento de mão de obra,
Em 1759, em Portel a epidemia de bexiga foi o motivo do atraso na remessa de índios para o serviço na vila
de Oeiras “por se acharem refugiados no mato os moradores desta povoação,
temerosos das bexigas [...], este o motivo porque a mais tempo não tenho feito
a remessa do número de índios que continha a dita portaria” (APEP, cód. 95,
doc. 16). Da mesma forma, outras vilas sofreram os impactos pela carência de
mão de obra para os trabalhos que a colonização necessitava. Alexandre
Rodrigues Ferreira, baseado nas memórias de Teodósio Constantino Chermont,
argumenta que a agricultura foi prejudicada com propagação das bexigas, posto
que pouca lavoura foi praticada com a mortandade de índios. O governador Manuel
Bernardo de Melo e Castro (1759 – 1763), nada pode fazer, pois segundo o
naturalista luso-brasileiro, “tomou posse do
cadáver de um estado, falido de gente, atacado de horrorosa epidemia das bexigas e, para dizer tudo em pouco, ameaçado
dos três flagelos
da peste, da fome
e da guerra” (FERREIRA, 2007: 530).
No decorrer dos anos, a doença continuou
comprometendo as atividades que dependiam dos
trabalhos de indígenas e escravizados, como os pequenos estaleiros, localizados
às proximidades de Belém, usados para a fabricação de canoas. A doença comprometeu também o Arsenal do Pará fundado
em 1761 no governo de Manoel Bernardo de Mello e Castro, usado para a construção de embarcações maiores.
Em 1794, a epidemia de bexigas
afetou os trabalhos de construção das novas charruas:
“não se pode dar princípio ao trabalho em quanto não cessar
a epidemia das bexigas, visto que chamar índios para a cidade é o mesmo que
condená-los a morrer da peste, a que não resistem quaisquer que sejam os
socorros, que se lhe apliquem” (AHU, Pará, Cx. 104, D. 8248). Outras
construções de embarcações ficaram comprometidas pela carência de trabalhadores. Em 1795, os navios que estavam sendo
construídos no estaleiro de Belém atrasaram, pois “seis
meses que a epidemia das bexigas me obrigou a inação espero ressarcir
esforçando-me com o rigor que posso em que se adiantem estas obras, e espero
que em menos de seis meses estejam nos termos de se lançarem ao mar não
sobrevindo incidente imprevisto” (AHU, Pará, Cx. 105, D. 8305).
Outras
culturas também foram prejudicadas por falta de braços. Segundo Alexandre Rodrigues Ferreira, por carência de trabalhadores, vitimados
pelas epidemias de bexigas,
houve problema com a colheita do
cacau (FRERREIRA, 2007: 540), que apesar de ser considerado o principal
produto econômico na segunda metade do século XVIII, teve uma queda em relação
aos anos anteriores, em decorrência da constante morte de indígenas no baixo Amazonas. (ALDEN, 1974: 32 e 85). No entanto, o governo tentou
resolver a carência
de mão de obra com constituição da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, que segundo Dauril
Alden estimulou o aumento da exportação
deste produto e impulsionou o tráfico de africanos para a Amazônia. Deste modo,
o governo português, durante os funestos
contágios de bexigas, prosseguiu com a colonização intensificando o
comércio negreiro na região amazônica, sobretudo após o monopólio da Companhia
Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão que imprimiu uma nova possibilidade
de mão de obra para os colonos amazônicos. O término do exclusivo comercial da companhia coincidiu com uma grande
epidemia de bexigas no final da década de 1770, que assolou todo o Estado
paraense. Mesmo perdendo o monopólio, a Companhia de Comércio
continuou traficando africanos para a região
amazônica até 1788.
Nos de 1794-1800 a região foi assolada por sucessivos surtos epidêmicos
de bexigas. O governo, nesse momento, incentivou o comércio negreiro, por meio do Indulto do Perdão do Direitos em 1794, um imposto que concedia isenção
aos comerciantes que traficassem africanos para a região amazônica.
Com essa política,
o governo português estimulou o comércio
negreiro, para usar a mão de obra africana em seus
empreendimentos, sem contudo, abrir mão do indígena, como previa a legislação.
Dessa maneira, a partir da segunda
metade do século XVIII, os indígenas continuaram desenvolvendo trabalhos em
todos os espaços, de maneira individual ou na companhia dos africanos
escravizados. Ainda que estes tenham contribuído intensamente com a colonização
nas diversas atividades, a mão de obra indígena foi determinante para a manutenção e prosseguimento da colonização da região amazônica. Após a
instalação do Diretório, os pedidos
de descimentos indígenas passaram a ser feitos, diretamente, aos diretores das vilas e lugares.
Durante a construção da fortificação de São José de Macapá
constantemente indígenas eram enviados para desempenarem trabalhos nos
diferentes locais ligados a obra (APEP, cód:153, doc.38, ano.1765).
Sobre
o intenso trabalho indígena, segundo Cecilia Chaves Brito, “o trabalho do
indígena revelou-se, muito cedo, como a única possibilidade de viabilizar
projetos de exploração econômica”, fato que se caracterizou com a organização da produção extrativista, cuja principal
mão de obra seria o indígena. Dentro desta relação de produção, o indígena foi
integrado como força de trabalho desde os primeiros tempos da colonização por
meio da escravização e do repartimento. Pelo repartimento indígena
foi considerado livre
até a segunda metade do século XVIII,
momento em que foi submetido ao trabalho compulsório (BRITO, 1998:
115-18, 120). Para Cecília Brito, “a legislação portuguesa apenas estruturou
formas compulsórias de trabalho
diferenciadas, seja através da evangelização – índios como cristãos convertidos
– seja pela liberdade – livre como cidadãos.” O Diretório apenas “aparentemente
rompia” com a escravização incompleta que existia nas missões e com a escravidão dita de fato. O indígena continuou expropriado de
sua força de trabalho ao ser submetido ao trabalho compulsório. Pelo trabalho
compulsório, a autora entende que os indígenas ocuparam praticamente todos os setores
produtivos da sociedade ao serem controlados pelas “Corporações de índios”,
registros que determinavam o tempo e a permanência nos locais de trabalho. A partir
do momento em que há uma determinação direcionando os índios para diferentes frentes de trabalho e lugares, de acordo com
as corporações, a liberdade dos mesmos, conforme previa a legislação, foi
suprimida (BRITO, 1998:121-125).
Embora
o governo tenha incentivado o comércio negreiro e ao mesmo tempo decretada uma legislação que previa
a liberdade irrestrita, sobretudo no contexto do Diretório, os indígenas
predominaram no mundo do trabalho na Amazônia.
Não quero desconsiderar a importância da mão de obra africana para o crescimento da economia
paraense, principalmente nos
anos que as bexigas grassaram a região. Pelo contrário, quero mostrar que os
indígenas também atuaram ao lado de negros em um período
que a legislação indígena previa
a liberdade, mas que
constantemente era suprimida sobretudo no trabalho compulsório. Dessa maneira,
podemos entender a atuação dos povos indígenas individualmente ou na companhia de africanos trabalhando nas diversas ocupações durante os
contágios de bexigas no Grão-Pará. Como sugere Patrícia Sampaio, as
experiências envolvendo indígenas e africanos tanto livres quanto escravos
tornam-se importantes para se analisar
as formas de trabalho compulsório utilizado pelos portugueses ao
longo do processo de colonização da Amazônia (SAMPAIO, 2003: 9).
Considerações Finais
Na
segunda metade do século XVIII, com o estabelecimento das políticas pombalinas,
ocorreram sucessivos casos de epidemias de bexigas, que se propagaram para o
Grão-Pará, provavelmente pela fronteira amazônica e também
pelas embarcações negreiras
que aportavam na região
trazendo africanos, que não raramente vinham infectados com a doença. Assim, no
decorrer do período ativo do comércio negreiro um avultado número de seres humanos morreu vítima dos constantes surtos de bexigas em solos
amazônicos. Essas epidemias atingiram sobretudo os povos indígenas e africanos
escravizados, que viviam geralmente em estado insalubre, sem recursos de
higiene e saúde.
Com
medo da doença não raramente indígenas e africanos abandonavam suas moradas e
fugiam para os matos da redondeza ou distantes dos infectados buscando
proteção. Essas fugas não ocorriam
somente em tempos
de epidemias, pelo contrário, eram constantes na região
amazônica, faziam parte do cotidiano das populações indígenas e negros
escravizados. Por diversos motivos, os indígenas empreendiam fugas individual
ou coletiva, na companhia de outras pessoas, como os escravizados, mas no período
de epidemias tornavam
mais frequentes. Houve aldeias
que foram devastadas pelo contágio das bexigas ou esvaziadas com as frequentes fugas de índios que apavorados
embrenhavam-se nos matos, implicando seriamente no desenvolvimento das diversas
culturas que dependiam exclusivamente da mão de obra indígena. Dessa
maneira, as epidemias de bexigas não apenas contribuíram para o desequilíbrio demográfico, mas afetaram
sobretudo o processo de colonização com a falta de mão de obra, importante para
o andamento da colonização portuguesa no Grão-Pará.
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NOTAS
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1 O Cabo Norte era uma capitania ligada diretamente a capitania do Grão-Pará, atualmente a região corresponde em termos geográficos ao estado do Amapá. A vila de São José de Macapá pertencia ao Cabo Norte.
2 Atualmente é o município de Coari, localizado no estado do Amazonas.
De que maneira a expulsão do jesuítas esteve relacionado ao reparcelamento das doenças endêmicas e epidêmicas na região amazônica?
ResponderExcluirMateus de Sousa Almeida.
Boa noite, com relação a população indígena, argumento que, desde o estabelecimento do Diretório em 1757 e consequentemente com a expulsão dos jesuítas, os indígenas ficaram vulneráveis aos contágios não somente das bexigas, mas de outras doenças. Com frequência eram enviados para diferentes locais de trabalho, muitas vezes insalubres, longas jornadas de trabalhos, alimentação precária. Esses fatores contribuíam diretamente para o adoecimento, principalmente em tempos de epidemias, posto que não possuíam imunidades a certas doenças, como as bexigas, por isso tornaram as principais vítimas da doença.
ExcluirCom as doenças trazidas pelos negros transportados ao Brasil, obteve-se uma série de problemas tanto na região amazônica no sentido de população e desenvolvimento, como na cultura, costumes, crenças que pertenciam aos indígenas em que ali viviam, houve a disseminação da população daquela região, visto isso como uma grande perda para a nossa nação, pois ali foi perdido grande parte de culturas, crenças, costumes, enfim uma perda da nossa identidade nacional.
ResponderExcluirAutora: Raryelle Mauranna de Araújo Leal.
Boa noite. Embora exista uma relação direta da propagação das bexigas com o comércio negreiro, eu não considero que a presença africana na região amazônica, nem em outras partes do Brasil, represente uma perda, pelo contrário, a presença africana contribuiu muito com a nossa cultura e com a nossa identidade. As doenças que vieram com os africanos, não eram doenças de africanos, mas sim, doenças de escravizados, consequência direta do sistema de escravidão. Desde o Continente Africano ao Brasil, os africanos enfrentaram vários problemas (fome, sede, doenças, desidratação, etc.) que vão contribuir para o contágio das bexigas e outras doenças infectocontagiosas ao longo do período de escravidão. Assim, como os indígenas, os africanos foram vítimas da escravidão e do tipo de colonização gestada no Continente Americano.
ExcluirOlá, boa tarde. Fiquei curiosa sobre um determinado ponto: Você já consegui atentar para a relação entre esses padrões e o perfil sócio demográfico, a identidade étnica, a ocupação e o gênero dos escravizados?
ResponderExcluirAs. Talyta Marjorie Lira Sousa Nepomuceno
Boa noite. Indígenas e africanos na condição de livres e/ou escravizados, em diferentes ocupações, constituíram a maior parte das vítimas da doença. A documentação nem sempre mostra o gênero, mas analisando os trabalhos desenvolvidos na região, considero que muitos homens morreram e certamente tornaram as principais vítimas. Mas, é importante observar, que embora a documentação não mostre, no período de epidemias, a mortandade foi geral entre homens e mulheres.
ExcluirBoa noite, com relação a população indígena, argumento que, desde o estabelecimento do Diretório em 1757 e consequentemente com a expulsão dos jesuítas, os indígenas ficaram vulneráveis aos contágios não somente das bexigas, mas de outras doenças. Com frequência eram enviados para diferentes locais de trabalho, muitas vezes insalubres, longas jornadas de trabalhos, alimentação precária. Esses fatores contribuíam diretamente para o adoecimento, principalmente em tempos de epidemias, posto que não possuíam imunidades a certas doenças, como as bexigas, por isso tornaram as principais vítimas da doença.
ResponderExcluirParabéns pelo texto. No decorrer do texto você fala sobre o contágio, mas qual era o principal meio de contágio?
ResponderExcluirLuiz Samuel Sousa Oliveira
Obrigado, Luiz. A documentação que analisei não mostra explicitamente como ocorreu o contágio, mas pelas características como descreve os casos, considero que certamente, ocorreu sobretudo pelo contato físico.
ExcluirJá que geograficamente as regiões são distantes uma das outras e porque temos essa dificuldade de controlar o contágio?
ResponderExcluirIvanuel Moraes de Sousa (UFMA)
Embora distante uma região da outra, a doença rapidamente se propagava e circulava entre as regiões, dificultando o controle, principalmente nos períodos de epidemias. A relação de trabalho, as fugas, a correria das populações indígenas (são alguns exemplos), associadas a precária estrutura médica, sobretudo no interior do Grão-Pará, certamente contribuíram para propagação e ao mesmo tempo dificultaram o controle do contágio da doença.
ExcluirQuais os principais fatores para essa afirmação de Brito de que "Macapá situava-se em uma região insalubre que tornava propício às doenças, como bexigas, sarampo, diarreias e febres catarrais (BRITO, 1998: 131).?
ResponderExcluirIvanuel Moraes de Sousa
Tratava de uma região insalubre por conta da área pantanosa e do clima amazônico que possibilitavam o surgimento de doenças como a malária, sobretudo na estação do inverno. Esses fatores associados as péssimas condição de trabalho e a precária alimentação contribuíam para a proliferação de outras doenças que vitimaram, sobretudo os trabalhadores da construção da fortificação de Macapá, na segunda metade do século XVIII.
ExcluirParabéns, pela pesquisa. Um trabalho rico em conteúdo e informações que muitas vezes são negligenciadas e mesmo amenizadas, mas que neste espaço foi bem introduzido e explorado.
ResponderExcluirBoa noite, muito obrigado. Acredito que ainda faltam trabalhos na historiografia que possam contribuir com a História das Doenças e da Saúde, não somente no Grão-Pará, mas em todo o Brasil-Colônia.
ExcluirUma pesquisa muito interessante. Você fala da disseminação de doenças, tais doenças neste contexto social poderias ser prevenidas? Como?
ResponderExcluirJoice da Conceição Lima, UFMA/Codó
Boa noite. Vários métodos preventivos foram usados, como a fiscalização da saúde nos portos amazônicos, quarentenas, construção de lazaretos, variolização, remédios caseiros, curandeirismo e outros. A vacina, considerada o método mais eficaz, surgiu no final do século XVIII. Apesar disso, a doença foi erradicada do planeta somete em 1980, de acordo com a OMS. Portanto, antes da erradicação, muitas medidas foram experimentadas para amenizar e controlar a doença.
ExcluirParabéns!
ResponderExcluirÉ uma pequisa de extrema importância histórica e social, sobre o como o descaso afeta e pode destruir povos como os indígenas e negros escravizados. É o enredo que conta a trajetória de uma "nação" que desconhece ou mesmo fecha os olhos para a parte "obscura" de seu passado histórico.
Mais uma fez, ótima pesquisa.
Joice da Conceição Lima, UFMA/Codó
Boa noite, muito obrigado, Joice. Realmente, a pesquisa tem esse objetivo, refletir sobre as mortes de indígenas e africanos escravizados, considerados as maiores vítimas das epidemias de bexigas não somente no Grão-Pará, mas em todo o continente americano.
Excluir