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ENTRE A CIDADE E O SERTÃO: AS EPIDEMIAS DE BEXIGAS NO GRÃO-PARÁ COLONIAL (1755-1820)


Benedito Carlos Costa Barbosa
Doutorando em História das Ciências e da Saúde (Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz)


Introdução
           A história da Amazônia foi marcada pela dizimação dos povos indígenas durante o processo de colonização. As doenças trazidas pelos europeus, entre as quais, as bexigas (varíola) se propagaram para o Grão-Pará desde o século XVII e se intensificaram ao longo dos séculos XVIII e XIX, causando diversos problemas socioeconômicos e demográficos, sobretudo nos povos indígenas, como assinalam as cartas trocadas entre autoridades coloniais e metropolitanas, e os diários dos viajantes que estiveram na região amazônica. A propagação da doença certamente foi facilitada pela precária estrutura médica e sanitária, principalmente na parte mais afastada de Belém, isto é, nas vilas, no sertão e na área de fronteira, atingindo os povos indígenas principalmente após o estabelecimento do Diretório do Índios, em 1757.
          No rastro das políticas de colonização implantadas na região amazônica, a partir da segunda metade do século XVIII, este artigo busca investigar o contágio e o impacto das bexigas no Grão-Pará no período de 1755 a 1820, momento em que houve um crescimento dos surtos epidêmico tanto na cidade de Belém, quanto no interior, no sertão e na fronteira amazônica. O artigo será analisado com base nos documentos coloniais do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) e Arquivo Público do Estado do Pará (APEP). Também utilizo obras que contem informaçoes etnográficas das regiões visitadas pelos naturalistas e missionários que permitem entender um pouco dos aspectos socioculturais da Amazônia no contexto das epidemias. Portanto, essas fontes tecem informações importantes, ainda que de forma limitada, sobre a propagação e a consequência das epidemias de bexigas nas terras paraenses.

O contágio das bexigas na cidade de Belém


       A cidade de Belém do Grão-Pará, fundada no século XVII à margem da baia de Guajará, gradativamente cresceu em torno do Forte do Presépio, construção feita sob as ordens de Francisco Caldeira Castello Branco para demarcar a presença lusitana no norte da América portuguesa. O espaço de ocupação que se formou nas imediações desse forte constituiu a freguesia da Sé, com casas residenciais, prédios administrativos, igrejas e estabelecimentos comerciais. Com o processo de povoamento, surgiu a freguesia de Sant'Anna da Campina, e posteriormente a freguesia da Trindade, mas esta somente no início do século XIX, agregava parte da população menos abonada na zona periférica. Nesse espaço, homens, mulheres e crianças conviveram com os problemas de Belém no século XVIII e começo do XIX, sobretudo com a propagação de variadas doenças endêmicas e epidêmicas, como as bexigas e sarampo, duas doenças, que durante muito tempo constituíram flagelos na região amazônica.
          No governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1750-1758) houve dois contágios de bexigas e sarampo, que fizeram estragos entre a população indígena e africana na condição de livre e escravizada. No governo de Fernando da Costa de Ataíde Teive (1763-1772) os contágios das doenças continuaram, sendo mais forte no interior, sobretudo na vila de São José do Macapá (FEREEIRA, 2007: 49). Em 1776, uma grande epidemia de bexigas vitimou “mais de mil e tantas pessoas”. Atingiu índios, escravos, soldados e outras pessoas que residiam nos diferentes espaços da cidade. Ainda no mesmo ano, o governador João Pereira Caldas preocupado com a diminuição no número de soldados mortos pela epidemia comunicou o secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro “contudo ao presente se acham diminuídos de algumas praças pertencentes ao Estado completo, pelos muitos soldados, que tem morrido da lamentável epidemia de perniciosíssimas bexigas, que se tem aqui padecido, e está ainda padecendo com grande força” (AHU, Cx.76, D. 6350). Provavelmente, mais soldados morreram. Nos mapas inclusos na carta constam 44 soldados hospitalizados, sendo 22 soldados referentes as Praças do Regimento de Infantaria do Macapá e 22 soldados referentes as Praças do Regimento de Infantaria da cidade do Pará (AHU, Cx.76, D. 6350).
           Essa epidemia vitimou sobretudo índios, negros e soldados, não somente em Belém, mas em várias partes do Grão-Pará, pois a doença grassou para o interior e o sertão amazônico. A documentação analisada não permite saber o tempo da duração do contágio. É provável que se prolongou por muito tempo em Belém. No começo de 1778, o governador João Pereira Caldas noticia o secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, a “ocorrência de um cruel contágio de bexigas, e de mais algum incomodo de parte destas gentes, que fez, e havia feito indispensável a fiel execução da soberana ordem de Sua Majestade” (AHU, Pará, Cx. 79, D. 6536). As autoridades de Belém, tomavam providências, mas nem sempre foi possível evitar o contágio. A doença se disseminava de maneira funesta, causando vários danos entre a população, principalmente mortes de indígenas e escravizados que ocupavam mão de obras nos serviços coloniais.
            Em 1793 houve outro contágio em Belém que se estendeu, segundo Artur Vianna, até o começo de 1800, não diretamente, mas em sucessivos surtos. O primeiro surto começou no mês de junho e durou até 1794. O governador Francisco de Souza Coutinho tomou algumas providências, mas não conseguiu conter o avanço da peste que rapidamente tomou conta da cidade, vitimando muita gente, “com uma porcentagem atroz sobre os índios e mestiços; os batalhões milicianos, em sua quase totalidade compostos destes indivíduos, sofreram um tal ataque que a bem dizer, perderam todo o seu efetivo” (VIANNA, 1975: 39, 44).
             Segundo o substituto do Físico-Mor do estado do Grão-Pará ao tratar da inoculação das bexigas, “por mais de uma vez tem sofrido horríveis contágios, dos quais o último de 94 como é constante, foi dos mais espantosos, pela grande mortandade que houve” (AHU. Cx. 124 D. 9561). As cenas de tristeza causadas pela mortandade foram lembradas no primeiro Círio de Nossa Senhora de Nazaré em Belém, ocorrido em 8 de setembro de 1793. No decorrer da procissão da santa, os romeiros ao passarem pelo cemitério se depararam com a lembrança da triste epidemia iniciada a pouco tempo na cidade. Este cemitério, talvez seja o mesmo construído no governo de João Pereira Caldas para enterrar os mortos da epidemia de 1776. O medo, provavelmente, estava presente na memória do povo paraense que após vinte anos enfrentava os problemas de mais uma epidemia de bexigas (VIANNA, 1904: 236-237).
          Após ceifar a vida da população, de maneira funesta, principalmente indígenas e mestiços, a doença deu uma trégua, diminuindo temporariamente o contágio no inverno de 1795, mas retornou pouco tempo depois, no verão de 1796 (VIANNA, 1975: 42). Em fevereiro de 1797, o governador e D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho noticiou o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Guerra, Luís Pinto de Sousa Coutinho, sobre o surto de bexigas que a meses iniciou na capital paraense. Embora preocupado, relata que, “até agora não me consta que tenha passado além da cidade e nela é disposto que termine ao presente por ser chegada a estação das águas que comumente faz cessar este, e outros flagelos semelhantes” (AHU, Pará, Cx. 108, D. 8538).
            O contágio supostamente se estendeu até 1798, momento em que os oficiais da Câmara de Belém preocupados com o contágio das bexigas e de outras doenças que tomavam conta da cidade solicitaram a rainha D. Maria I a nomeação de dois médicos para prestarem socorros a população de Belém (AHU, Pará, Cx. 113, D. 8788). A epidemia, igualmente a ocorrida nos anos de 1793-1794, vitimou muita gente. Segundo Valetim Antonio de Oliveira e Silva, secretário do Estado, “sendo presente a Sua Majestade a grande e lamentável mortandade que tem causado nos Povos deste Estado a cruel epidemia de bexigas, não nestes cinco annos em que incessantemente os tem perseguido, mas em outros anteriores” (VIANNA, 1975: 43-44).
             Após a epidemia que abateu a população belenense no final do século XVIII, certamente outros casos surgiram no início do século XIX, posto que houve uma preocupação do soberano português com a inoculação no Grão-Pará. Domingos Correa Diniz que trabalhou como substituto do Físico-Mor do Estado, em cópia do parecer que dirigiu sobre a inoculação das bexigas em fevereiro de 1803, argumentou: “Há pouco mais de dois anos que estou nesta capital com o emprego de Médico substituto do atual Físico-Mor do Hospital Real, neste espaço de tempo só em Novembro do ano próximo passado tive ocasião de assistir a quatro pessoas bexigosas, que vindo infectadas do Maranhão, estavam em São Jozé retiradas por ordem de V.Exª” (AHU, Cx.124, D. 9561).
            Os trabalhos de inoculação foram intensificados no final do século XVIII e início do XIX, sob ordens do governo português que mandou inocular principalmente os meninos índios e negros, certamente por serem as maiores vítimas do contágio. O comércio negreiro, nesse momento, estava com todo vigor entre as costas amazônica e africana. De acordo com Arthur Vianna, no ano de 1806 houve novamente um surto da doença, consequência da chegada do navio Sertório no porto de Belém. O navio trazia escravizados contaminados pelas bexigas. Consultando a trajetória do navio Sertório no slave voayages percebi uma grande diferença entre os números de escravizados embarcados e desembarcados. Provavelmente que os números estejam relacionados aos contaminados indicados por ArthurVianna. Depois de perder parte dos escravizados em viagens, a embarcação aportou em Belém trazendo escravizados “vindos da Costa, d’Africa Occidental, principalmente o último denominado Sertorio, que não, obstante ser logo acautelado e posto de quarentena na Ilha do Arapiranga, para ahi se purificar e promover como era necessário o curativo dos muitos enfermos (VIANNA, 1975: 45-47).
             Ainda que o governador José Narciso de Magalhães de Menezes tenha tomado providências, o contágio foi inevitável e em poucos dias a doença atingiu a cidade. Os escravizados, segundo o governador, já entraram doentes e infeccionaram a cidade, “que imediatamente fiz passar - para a Fazenda Pinheiro” (VIANNA, 1975: 45-47). Após o contágio de 1806 em Belém, embora a historiografia não faça referência a outros casos de bexigas à região paraense, certamente houve outros casos que não foi possível identificar nas fontes consultados. Treze anos após o contágio do navio Sertório, outra epidemia tomou conta da cidade, conforme Arthur Vianna, provocada pela embarcação de escravizados provenientes do continente africano. Em abril de 1819, a doença ressurgiu em Belém. Em razão da estação do inverno, a doença não teve um crescimento significativo, mas de junho em diante, período em que as chuvas cessam com a chegada do verão, a doença se propagou de maneira epidêmica na cidade. Belém ficou em estado de calamidade “minada de doentes em todos os bairros”. Possivelmente dois terços da população foi afetada pela epidemia (VIANNA, 1975: 46-48).
          Arthur Vianna, estudante de medicina que se arriscou a esboçar um estudo sobre as epidemias que assolaram o Pará, aponta que são registrados do mês de abril a 10 de setembro de 1819, 2.200 mortes. Para Vianna, baseado no censo, argumenta “se levarmos em conta que um recenseamento de 1801 dera para Belém 12.500 habitantes, constataremos que sucumbiu quase uma sexta parte da população” (VIANNA, 1975: 50). O naturalista Spix e o médico Martius, alemães que viajaram para o Brasil no início do século XIX, na expedição cientifica no período de 1817 a 1820, visitaram várias regiões brasileira. Em Belém registraram o contágio das bexigas e de outras doenças exantemáticas. Sobre as bexigas, argumentam “grassava juntamente ao tempo de nossa estada, constituindo maligna epidemia, que no auge sacrificava diariamente 30 a 40 pessoas, e durante meio ano arrebatou mais de 3.000 indivíduos, de todas as raças e condições” (SPIX e MARTIUS, 1976: 20, tomo 3). Os serviços municipais de enterramento foram negligenciados tanto pela Câmara de Belém, quanto pelos coveiros, este não colocavam os cadáveres “em sepulturas pouco profundas”. Essa falta de cuidado do poder público para com os mortos, vitimados pela epidemia, certamente comprometeu a saúde dos moradores, principalmente os que moravam em áreas próximas do cemitério, pois dele “exalava um fétido insuportável” (VIANNA, 1975: 48).
             Embora sem dados estatísticos sobre o número de mortos nas diversas epidemias ocorridas durante a segunda metade do século XVIII e início do XIX, de um modo geral, pode- se considerar grande a mortandade em Belém. Baseado no quadro I, que mostra um indicativo dos dados populacionais no período de 1765 a 1820, percebo que o número de habitantes de Belém desde a segunda metade do século XVIII cresceu, com exceção em alguns anos, por conta certamente das epidemias de bexigas na cidade. Entre os anos 1777-1788 existe um decréscimo nos dados demográficos, período que coincide com a epidemia propagada nos anos de 1776-1777 que atingiu não somente Belém, mas o interior e o sertão. Entre os anos 1788- 1792 a diferença populacional também pode estar relacionada com outras epidemias ocorridas que embora não seja possível verificar na documentação, é pronunciada por Alexandre Rodrigues Ferreira, quando esteve na região. Entre os anos de 1792-1797-1801 não houve decréscimo populacional, pelo contrário houve uma aumento, mas muito lento, considerando uma média de cinco anos a diferença entre os anos. Esse baixo crescimento populacional está relacionado diretamente com as consequências das funestas epidemias que abateu a população de Belém no período de 1794-1800. Mas, a peste não ficou somente em Belém, propagou-se também para o interior (missões, vilas e povoados) até o sertão amazônico e área de fronteira, causando também sérios problemas para a população, como mostrarei na próxima parte.

Quadro II: População do Grão-Pará
Ano
Belém
Grão-Pará
1765

33.565
1777
8.028

1778
10.074
54.914
1782

55.315
1783
6.978

1787


1788
10.620

1792
8.573

1797
11.745
70.604
1801
12.500
80.000
1816

94.120
1820
24.500
68.190

Fonte: AHU. Pará (Avulsos), cx: 76, doc.6368 (1777); SALLES, 2005: 96; AUGUSTO, 2007: 47-
48. CDC.

O contágio das bexigas no vasto interior e nos confins do sertão

            A política pombalina culminou com a expulsão dos jesuítas da região amazônica e retirou dos missionários a tutela dos índios entregando aos diretores. Segundo a carta régia de 6 de junho de 1757, os aldeamentos que apresentassem condições passariam a categoria de vilas ou lugares com a substituição dos nomes indígenas pelos nomes portugueses (RODRIGUES, 1968). Esses povoados pombalinos passaram para administração dos diretores, que exerceram importante papel na seleção e utilização da mão de obra indígena destinadas aos trabalhos na região. Gradativamente as aldeias tornaram-se vilas e lugares. No período de 1755 e 1759, o governador do Grão-Pará Francisco Xavier de Mendonça Furtado implantou nas Capitanias do Pará e Rio Negro, muitas vilas e lugares, que provocou grandes modificações na distribuição da população. Colonos e indígenas deveriam se estabelecer no mesmo espaço geográfico, com o objetivo de integrarem-se no universo da colônia. As vilas e lugares seguiam aos propósitos de povoamento, de irradiação da cultura portuguesa e de ordenação de índios e colonos segundo as regras da metrópole (ALVES, 2010: 24).
As transformações socioeconômicas e culturais, consequências das políticas pombalinas, contribuíram para o contágio de bexigas ao longo da segunda metade do século XVIII e início do XIX, que afetaram mormente, os povos indígenas dispersos nas aldeias, nas vilas e nos povoados. Segundo Carlos Fausto, após a expulsão dos jesuítas, em 1757, as epidemias voltaram a assolar a região amazônica, de 1762 a 1800 (FAUSTO, 2001: 50). No extremo norte da Amazônia, as bexigas se disseminaram nas terras do Cabo Norte,1 especialmente no contexto da construção de São José de Macapá (1764-1782). Ainda em fevereiro de 1765, José Antônio Salgado, inspetor da obra de fortificação, comunicou Fernando da Costa de Ataíde Teive, governador do Grão-Pará e Maranhão: “no mapa incluso verá V. Exª todos os operários que trabalham nesta fortificação e os doentes que há tantos índios como pretos e todas as províncias que tem havido” (VERGOLINO-HENRY e FIGUEIREDO, 1990:77 e 78). As doenças constituíam um problema para o andamento da obra, sobretudo pelas bexigas e sarampo que abateram os operários nas dependências da obra e nos espaços provedores de matéria prima. Ainda nesse mês, o comandante da Praça de Macapá, Nuno da Cunha de Atayde Verona relatou ao governador do Grão-Pará a situação dos trabalhadores: “com incansável cuidado e vigilância, continuo no trato e com modo dos cento e setenta e quatro pretos do Senado da Câmara dessa cidade, sem que possa conseguir o evitar-lhes as doenças e as fugidas achando-se no hospital 48 e tendo falecido nele um e ausentes 17” (VERGOLINO- HENRY e FIGUEIREDO, 1990: 79 e 80).
Em março de 1765, o contágio da bexigas juntamente com o sarampo comprometeu o estado de saúde dos trabalhadores, como mostra Atayde Verona, em carta ao governador do Pará: “este grande número de doentes não só pretos, mas também de índios da fortificação, da serraria e Anauerapocú, com alguns soldados, me obrigou indispensavelmente a lhe fazer mais uma casa de palha”, para separar os doentes de bexigas dos doentes de sarampo que vieram em calcetas dessa cidade (VERGOLINO-HENRY & FIGUEIREDO, 1990: 80). No segundo semestre de 1765, 36 trabalhadores encontravam-se no hospital, consequência dos duros trabalhos e das inúmeras doenças que imperavam na região. O cenário de enfermidade não se diferenciou anos depois, mais precisamente em 1767, que mostra o aumento no número de mortes e doentes: 24 no hospital, 58 falecidos e 90 ausentes. Os falecidos, provavelmente de doenças. (VERGOLINO-HENRY e FIGUEIREDO, 1990: 90).
O contágio das bexigas, igualmente outras doenças, decerto estava relacionado com as péssimas condição de trabalho, a precária alimentação servida aos operários e a insalubridade “atribuída ao ritmo das marés e a proliferação de insetos”, transmissor de doenças. Os pântanos contribuíam para a insalubridade do clima e as “sessõens” vitimavam grande número de trabalhadores indígenas, desnutridos e sem imunidades às novas doenças (ACEVEDO MARIN,1998: 67). Macapá situava-se em uma região insalubre que tornava propício às doenças, como bexigas, sarampo, diarreias e febres catarrais (BRITO, 1998: 131). Os trabalhadores, não raramente, chegavam doentes em Macapá, sobretudo os indígenas. Alguns vinham de vilas e povoados que se estendiam ao longo do rio Amazonas e seus afluentes, que abrigavam antigas aldeias. Outros vinham de lugares distantes de Macapá demonstrando que o espaço geográfico não impedia a requisição de índios (APEP, cód:153, doc.38, ano.1765). Os povoados pombalinos, independentes da distância, constantemente sofriam surtos de bexigas. Dessa maneira, os povoados, as condições de trabalho e a insalubridade, sem dúvida, explicam parte da disseminação de inúmeras doenças como as bexigas, que contribuíram para o adoecimento e a dizimação de trabalhadores da fortificação. 
O contágio das bexigas não se restringiram ao espaço da construção da fortificação militar, mas grassou para outras partes da Vila de Macapá. Em maio de 1778, Antônio José em oficio para João Pereira Caldas por meio de um requerimento solicitando “três índias para [...] colher uma avultada lavoura de arroz para comprar as minhas despesas, e por alguns dos ditos escravos estarem enfermos das bexigas” (APEP, cód. 326 In: Relatos de Fronteira, 160). Em Julho do ano seguinte, um ofício de Manoel Gama Lobo Almada, Sargento-mor comandante da Fortaleza de Macapá enviado para Governador do estado do Grão-Pará e Rio Negro relata sobre o estado de saúde dos vinte negros que vieram para Macapá, entre os escravos doentes, “veio com bexigas confluentes, de que já faleceu” (APEP, cód. 195. In: Relatos de Fronteira, 143).
Apesar das informações sobre o contágio na vila de Macapá, não se tem dados estatísticos sobre o número de mortos. Alexandre Rodrigues Ferreira, baseado nas memórias de Teodósio Constantino Chermont, menciona em seu diário que no governo de Fernando da Costa de Ataíde Teive a epidemia que abateu o Estado foi mais acentuada nesta vila do que em Belém. O número de habitantes na vila era menor do que na capital paraense, logo o estrago foi maior em Macapá (FERREIRA, 2007:521). Ainda na região do Cabo Norte, as bexigas atacaram também os moradores de Mazagão, antiga aldeia de Santana. Em 1770 esta aldeia foi elevada à condição de vila e visava proteger a região da invasão de estrangeiros, sobretudo os franceses, com quem os portugueses divergiam o Cabo Norte. Em 1776, o governador João Pereira Caldas comunica o comandante o provedor comissário da Vila de Mazagão sobre “a deserção dos Índios, que aí se experimenta na ocasião presente, pode ter alguma desculpa pelo pavor que justamente lhes deve causar a geral epidemia de bexigas, que em todo o Estado se está experimentando, digo se está padecendo e tem já feito uma lamentável, e consideradíssima derrota” (APEP, cód. 306, doc. 181)
Na região das ilhas e dos furos, situada entre no interflúvio dos rios amazonas e Xingu, o contágio atingiu várias áreas. Em 1758 a missão Aracurá, instalada em 1653, tornou-se vila de Portel. No ano seguinte uma epidemia de bexiga se propagou na vila, causando vários transtornos nos moradores, como o atraso na remessa de índios ao serviço. Segundo José de Sá Lemos: “com a brevidade que desejava por se acharem refugiados no mato os moradores desta povoação, temerosos das bexigas que bastantemente os tem perseguido, este o motivo porque a mais tempo não tenho feito a remessa do número de índios” (APEP, cód. 95 doc. 16).
Na vila de Carrazedo, antiga Aldeia de Arapijó, localizada na margem direita do baixo Amazonas, na região de Gurupá, a doença atacou os índios. Em 1758, com a implantação das políticas pombalinas, a aldeia de Arapijó, administrada pelos missionários franciscanos da Piedade, foi elevada à categoria de vila, sob a jurisdição da Vila de Gurupá próximo ao arquipélago do Marajó. Em 1762, as bexigas atacaram alguns índios da vila (APEP, cód. 118, doc. 06). Outra correspondência endereçada do Rio Gurupá, de Bazilio José de Almeida para José de Nápoles Telo de Meneses, governador do Grão-Pará dava conta sobre o hospital dos bexigosos. Segundo o remetente, “em dia oito deste presente mês me foi preciso para bem de minha jornada tomar uma canoa pequena de trinta e três palmos [ir ao] recinto de Hospital de bexigosos pois não querendo o dito capitão [Antonio Albino] que em seu recinto ficasse o dito doente” (APEP, cód. 65, doc.127, ano.1780)
Em Breves também houve casos de bexigas, tratava-se de um doente da expedição de Spix e Martius. Os viajantes em suas andanças pela região das Ilhas e dos Furos diagnosticaram que o piloto da embarcação que os conduziam apresentava os sintomas da varíola. De acordo com os viajantes, “passava do meio-dia, quando uma chuvinha fina e nevoeiro começaram a encobrir-nos o singular arquipélago, e ao mesmo tempo o nosso piloto se queixou de mal-estar, aterrando-nos secretamente, ao reconhecimento nele sintomas de varíola”. Diante da situação que o piloto apresentava, “demos-lhe ordem de deitar-se embaixo, no convés e tomamos a direção do leme (SPIX e MARTIUS, 1976: 67, tomo 3). Os naturalistas, sem condições de tratarem o doente, navegaram até chegarem no dia 3 de setembro de 1819 na vila de Breves (Engenho dos Breves) para trocar o dito piloto que padecia da varíola. Após deixarem o doente, partiram para outras vilas da região das ilhas e furos. Depois de oito meses, ao retornarem à vila de Breves tiveram conhecimento da morte do piloto. Na região do rio Xingú, segundo Spix e Martius, as bexigas, juntamente com o sarampo constituíam as únicas doenças endêmicas agudas, que atacavam os indígenas (SPIX e MARTIUS, 1976: 97, tomo 3).
A doença também se disseminou à região do Rio Negro, localizada no oeste amazônico. Com a intenção de colonizar e ao mesmo tempo afastar a ameaça estrangeira na fronteira com os domínios espanhóis, o governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, criou em 1755 a Capitania do Rio Negro, desmembrada da capitania do Pará e formada pelas terras que hoje equivalem aos estados do Amazonas e Roraima (ANDRELLO, 2010: 111). A capitania do Rio Negro tornou-se base para a ocupação portuguesa no noroeste da Amazônia. Várias vilas foram criadas com esse objetivo. Ao longo dos anos vilas e aldeias indígenas sofreram severamente com a propagação das bexigas. Na vila de Olivença houve o contágio das bexigas. Em 1759, a antiga missão jesuítica São Paulo dos Cambebas empreendida pelo padre Samuel Fritz no Rio Solimões, na Capitania do Rio Negro transformou-se em vila. Em 1763, a doença se proliferou matando muitos índios, como atesta Fernando Correa Pestana em carta para o governador da Capitania do Grão-Pará. Conta que, chegou a esta vila em quatro de janeiro e venci o fim da viagem com muito trabalho causado da peste das bexigas”. Nessa epidemia, “morreram cinco pessoas de minha casa e quatro índios da vila, as mais escapa [corroído] da morte, mas não da bexiga, a canoa grande escapou do fatal contágio por que [corroído] o primeiro índio em que seu tal contágio os mais escaparam pela bondade de Deus” (APEP, cód. 128, doc.41).
Na Vila de Barcelos, antigo aldeamento indígena de Mariuá, também se disseminou o contágio das bexigas. Em 1758, este aldeamento missionário, sob administração dos missionários carmelitas foi elevado à categoria de Vila, com o nome de Barcelos. Nela, “as bexigas que tanto pegam e tantos estragos fazem nos índios, particularmente nos de há pouco descidos, pelo ordinário se tratam na enfermaria geral”. Nessa enfermaria, “estão os enfermos que não são de enfermidades contagiosas e que se arriscam por isso a adquirirem dentro do hospital um contágio com que não entraram nele” (FERREIRA, 2007: 214).
Em Airão, antigo povoado de Santo Elias do Jaú, também houve o contágio das bexigas. Este povoado, localizado na margem direita do Rio Negro, foi fundado em 1694 pelos missionários mercedários e carmelitanos que adentraram o oeste amazônico para evangelizar primeiramente os índios Tarumã e posteriormente outros grupos indígenas que migraram para a região nos séculos XVII e XVIII. A ação evangelizadora dos carmelitanos foi mais duradoura e contribuiu para o crescimento gradativo do povoado. Em 1759, Santo Elias do Jaú ascendeu a condição de Lugar com a denominação portuguesa Airão, exigência de Joaquim de Mello e Póvoas, governador do Rio Negro, para atender os interesses das políticas pombalinas. O estabelecimento da política pombalina acirrou as guerras com os índios que não se submetiam a colonização na região do Rio Negro. Deste modo, alguns grupos indígenas migraram de Airão, principalmente para o alto Rio Negro e colônias espanholas nas imediações da região, o que certamente provocou a decadência de Airão (LEONARDI, 2013: 25-32).
Os povos indígenas de Airão, constantemente sofriam com doenças. Alexandre Rodrigues Ferreira quando passou pela região do Rio Negro, descreveu os repetidos contágios das bexigas e do sarampo que concorreram à depopulação. Segundo este naturalista, “orepetidos contágios de bexigas e de sarampo têm diminuído muito a sua população. Conta-se que constando de 37 pessoas a família do principal Ambrósio de Santa Ana, só ele e um filho seu escaparam da morte em um desses contágios”. Argumenta ainda que, “há 12 anos a esta parte, que tem quatro descimentos”, sendo que “o primeiro deles constou de 150 almas da nação aroaqui, das quais têm morrido umas e outras se ausentaram”, “o segundo descimento constou de 37 almas da mesma nação, e delas ainda se conservam 15 (FERREIRA, 2007: 304). Os indígenas habitantes em Airão, assentados na margem direita do Rio Negro, foram assolados por epidemias nos séculos XVII e XVIII, sobretudo pelas bexigas que durante anos fizeram estragos na região do Rio Negro.
A aldeia Coari, no Rio Solimões, em 1759 tornou-se Lugar de Alvelos2, que também sofreu o contágio das bexigas. O ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio registrou que “tem tido esta povoação argumento em vários descimentos; mas no ano presente tinha padecido grave diminuição, por causa do contágio das bexigas, morrendo dele muitos índios, e desertando outros para os matos, como costumam nessas ocasiões” (SAMPAIO, 1985: 156-157). Anos mais tarde, os viajantes Spix e Martius ao passar por Arvelos, fazem referência as bexigas. Segundo os viajantes, “as bexigas e muito recentemente febres intermitentes malignas, causadas pelo transbordamento do lago, dizimam de quando em quando a população, que sem o socorro médico, ainda mais depressa sucumbe (infelizmente, em toda a província do Rio Negro não há médico diplomado)” (SPIX e MARTIUS, 1976:155, tomo 3).
Ega foi originalmente a missão Tefé ou Santa Tereza de Tapé, fundada em 1694 pelos carmelitas. Em 1759, Joaquim de Melo e Povoas, governador do Rio Negro, elevou a vila a condição de lugar, localizado no Rio Solimões. O lugar também é lembrado pelos naturalistas Spix e Martius, quando estes estiveram na região do Rio Negro: “antes, haviam as bexigas despovoando o lugarejo, assim como, desde 1803, as febres intermitentes anualmente ali reinantes” (SPIX e MARTIUS, 1976: 162, tomo 3).
Mas o contágio das bexigas nos século XVIII e XIX não ficaram somente nesses lugares citados, outros espaços do Rio Negro, sem dúvida foram atingidos. As autoridades se preocupavam com a propagação de doenças, principalmente as bexigas, que tantos problemas causavam não somente à população, mas ao processo de colonização. De acordo com os viajantes, “o governador desta última província, assustado pelo boato de perigosa epidemia de bexigas, que grassaria na província inferior, havia posto ali um destacamento de soldados da milícia, com o encargo de exercer estrita vigilância sobre a entrada de quaisquer viajantes naquelas alturas (SPIX e MARTIUS, 1976:104, tomo 3).
Além do interior, o sertão, sobretudo a área de fronteira do Grão-Pará tornou constantemente uma preocupação para colonização portuguesa. Os limites fronteiriços do ponto de vista político e geográfico da Amazônia, ainda não estavam totalmente definidos e mudavam constantemente. Desde os início da ocupação e do povoamento, a Coroa portuguesa procurou demarcar a região e defendê-la de incursões estrangeiras no estuário brasileiro. Realizou vários tratados e acordos, especialmente com os espanhóis e franceses. Antes da colonização, o continente americano já havia sido dividido entre portugueses e espanhóis pelo Tratado de Tordesilhas (REIS, 1960: 23). Apesar dos espanhóis receberem a maioria das terras amazônicas, houve certo descaso com a região, ficando a cargo dos ingleses e holandeses a tarefa de iniciar a exploração. A ocupação da Amazônia, dessa maneira, esteve estritamente relacionada com as invasões estrangeiras, pois não participaram do acordo de Tordesilhas (REIS, 1949: 17).
As ações dos colonizadores trouxeram serias consequências sociais para os habitantes da região, tais como migração, fugas, mortes e doenças, como as bexigas que se propagaram no sertão e área de fronteira. Na fronteira do Pará com o Tocantins ocorreu o contágio da varíola, especialmente no interflúvio dos rios Pacajá-Tocantins com os índios Apinajés que foram contatados com a sociedade de maneira permanente, somente em 1797. Vinte anos depois desse contato, os Apinajés foram assolados pela varíola que grassou a região (FAUSTO, 2001: 51). Na fronteira com o Maranhão, também houve a disseminação das bexigas. Spix e Martius, quando de suas passagens pelo Maranhão, observaram que São Luís, da mesma forma que toda a ilha, estava livre de doenças endêmicas e epidêmicas, com exceção das bexigas (SPIX e MARTIUS, 1976: 247, Tomo 2). A população maranhense, igualmente a paraense, desde o século XVII foi acometida pelas constantes epidemias de bexigas. Mário Meireles, baseado em Teodósio Constantino Chermont, argumenta que entre 1724 a 1776, a doença fizera praticamente endêmica em todo o Estado, e não apenas em São Luís. Em 1784 o governador José Teles da Silva montou postos para atender soldados contaminados pela peste na cadeia pública. Em 1787, outra epidemia tomou conta da cidade, causando muitas mortes (MEIRELES, 1994: 212, 177). No século XIX, novas epidemias ocorreram nas terras maranhenses. Em 1817 a doença se disseminou de Caxias para o oeste atingindo os índios Apinajés, que foram drasticamente devastados (HEMMING, 2009: 247).
É muito provável que alguns contágios de bexigas nas terras paraenses ocorreram com os doentes que entraram pela fronteira do Grão-Pará com outras capitanias portuguesas ou espanholas. As autoridades coloniais preocupavam com a militarização da área não somente pelos constantes surtos de doenças, mas por qualquer motivo que colocasse em risco a segurança da região. Os moradores das fronteiras (indígenas, escravizados, mocambeiros) regularmente cruzavam as fronteiras coloniais em fugirem ou deserção, práticas que concorreram para o contágio de doenças. É importante lembrar que, o comércio negreiro tornou-se também importante para o contágio de bexigas no Grão-Pará. As epidemias vitimaram, principalmente os africanos e indígenas na condição de livres e escravizados que atuavam em várias frentes de trabalhos no interior e sertão amazônico. Dessa maneira, a doença causou vários problemas, sobretudo a falta de mão de obra, que agravou fundamentalmente o processo de colonização, questões que serão analisadas na próxima parte.

O contágio e os meandros da colonização
     
      O contágio das bexigas trouxe graves consequências à região, não apenas pela redução da população do Grão-Pará que morreu e fugiu para as matas, mas pela carência da mão de obra suscitada. Os sucessivos contágios comprometeram seriamente o crescimento econômico da região amazônica, pois sem pessoas suficientes, com frequência os trabalhos paralisaram. Por essa razão, as epidemias ensejavam gravíssimos problemas de abastecimento de mão de obra, Em 1759, em Portel a epidemia de bexiga foi o motivo do atraso na remessa de índios para o serviço na vila de Oeiras “por se acharem refugiados no mato os moradores desta povoação, temerosos das bexigas [...], este o motivo porque a mais tempo não tenho feito a remessa do número de índios que continha a dita portaria” (APEP, cód. 95, doc. 16). Da mesma forma, outras vilas sofreram os impactos pela carência de mão de obra para os trabalhos que a colonização necessitava. Alexandre Rodrigues Ferreira, baseado nas memórias de Teodósio Constantino Chermont, argumenta que a agricultura foi prejudicada com propagação das bexigas, posto que pouca lavoura foi praticada com a mortandade de índios. O governador Manuel Bernardo de Melo e Castro (1759 – 1763), nada pode fazer, pois segundo o naturalista luso-brasileiro, “tomou posse do cadáver de um estado, falido de gente, atacado de horrorosa epidemia das bexigas e, para dizer tudo em pouco, ameaçado dos três flagelos da peste, da fome e da guerra” (FERREIRA, 2007: 530).
No decorrer dos anos, a doença continuou comprometendo as atividades que dependiam dos trabalhos de indígenas e escravizados, como os pequenos estaleiros, localizados às proximidades de Belém, usados para a fabricação de canoas. A doença comprometeu também o Arsenal do Pará fundado em 1761 no governo de Manoel Bernardo de Mello e Castro, usado para a construção de embarcações maiores. Em 1794, a epidemia de bexigas afetou os trabalhos de construção das novas charruas: “não se pode dar princípio ao trabalho em quanto não cessar a epidemia das bexigas, visto que chamar índios para a cidade é o mesmo que condená-los a morrer da peste, a que não resistem quaisquer que sejam os socorros, que se lhe apliquem” (AHU, Pará, Cx. 104, D. 8248). Outras construções de embarcações ficaram comprometidas pela carência de trabalhadores. Em 1795, os navios que estavam sendo construídos no estaleiro de Belém atrasaram, pois “seis meses que a epidemia das bexigas me obrigou a inação espero ressarcir esforçando-me com o rigor que posso em que se adiantem estas obras, e espero que em menos de seis meses estejam nos termos de se lançarem ao mar não sobrevindo incidente imprevisto” (AHU, Pará, Cx. 105, D. 8305).
       Outras culturas também foram prejudicadas por falta de braços. Segundo Alexandre Rodrigues Ferreira, por carência de trabalhadores, vitimados pelas epidemias de bexigas, houve problema com a colheita do cacau (FRERREIRA, 2007: 540), que apesar de ser considerado o principal produto econômico na segunda metade do século XVIII, teve uma queda em relação aos anos anteriores, em decorrência da constante morte de indígenas no baixo Amazonas. (ALDEN, 1974: 32 e 85). No entanto, o governo tentou resolver a carência de mão de obra com constituição da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, que segundo Dauril Alden estimulou o aumento da exportação deste produto e impulsionou o tráfico de africanos para a Amazônia. Deste modo, o governo português, durante os funestos contágios de bexigas, prosseguiu com a colonização intensificando o comércio negreiro na região amazônica, sobretudo após o monopólio da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão que imprimiu uma nova possibilidade de mão de obra para os colonos amazônicos. O término do exclusivo comercial da companhia coincidiu com uma grande epidemia de bexigas no final da década de 1770, que assolou todo o Estado paraense. Mesmo perdendo o monopólio, a Companhia de Comércio continuou traficando africanos para a região amazônica até 1788. Nos de 1794-1800 a região foi assolada por sucessivos surtos epidêmicos de bexigas. O governo, nesse momento, incentivou o comércio negreiro, por meio do Indulto do Perdão do Direitos em 1794, um imposto que concedia isenção aos comerciantes que traficassem africanos para a região amazônica.
Com essa política, o governo português estimulou o comércio negreiro, para usar a mão de obra africana em seus empreendimentos, sem contudo, abrir mão do indígena, como previa a legislação. Dessa maneira, a partir da segunda metade do século XVIII, os indígenas continuaram desenvolvendo trabalhos em todos os espaços, de maneira individual ou na companhia dos africanos escravizados. Ainda que estes tenham contribuído intensamente com a colonização nas diversas atividades, a mão de obra indígena foi determinante para manutenção e prosseguimento da colonização da região amazônica. Após a instalação do Diretório, os pedidos de descimentos indígenas passaram a ser feitos, diretamente, aos diretores das vilas e lugares. Durante a construção da fortificação de São José de Macapá constantemente indígenas eram enviados para desempenarem trabalhos nos diferentes locais ligados a obra (APEP, cód:153, doc.38, ano.1765).
Sobre o intenso trabalho indígena, segundo Cecilia Chaves Brito, “o trabalho do indígena revelou-se, muito cedo, como a única possibilidade de viabilizar projetos de exploração econômica”, fato que se caracterizou com a organização da produção extrativista, cuja principal mão de obra seria o indígena. Dentro desta relação de produção, o indígena foi integrado como força de trabalho desde os primeiros tempos da colonização por meio da escravização e do repartimento. Pelo repartimento indígena foi considerado livre até a segunda metade do século XVIII, momento em que foi submetido ao trabalho compulsório (BRITO, 1998: 115-18, 120). Para Cecília Brito, “a legislação portuguesa apenas estruturou formas compulsórias de trabalho diferenciadas, seja através da evangelização – índios como cristãos convertidos – seja pela liberdade – livre como cidadãos.” O Diretório apenas “aparentemente rompia” com a escravização incompleta que existia nas missões e com a escravidão dita de fato. O indígena continuou expropriado de sua força de trabalho ao ser submetido ao trabalho compulsório. Pelo trabalho compulsório, a autora entende que os indígenas ocuparam praticamente todos os setores produtivos da sociedade ao serem controlados pelas “Corporações de índios”, registros que determinavam o tempo e a permanência nos locais de trabalho. A partir do momento em que há uma determinação direcionando os índios para diferentes frentes de trabalho e lugares, de acordo com as corporações, a liberdade dos mesmos, conforme previa a legislação, foi suprimida (BRITO, 1998:121-125).
Embora o governo tenha incentivado o comércio negreiro e ao mesmo tempo decretada uma legislação que previa a liberdade irrestrita, sobretudo no contexto do Diretório, os indígenas predominaram no mundo do trabalho na Amazônia. Não quero desconsiderar a importância da mão de obra africana para o crescimento da economia paraense, principalmente nos anos que as bexigas grassaram a região. Pelo contrário, quero mostrar que os indígenas também atuaram ao lado de negros em um período que a legislação indígena previa a liberdade, mas que constantemente era suprimida sobretudo no trabalho compulsório. Dessa maneira, podemos entender a atuação dos povos indígenas individualmente ou na companhia de africanos trabalhando nas diversas ocupações durante os contágios de bexigas no Grão-Pará. Como sugere Patrícia Sampaio, as experiências envolvendo indígenas e africanos tanto livres quanto escravos tornam-se importantes para se analisar as formas de trabalho compulsório utilizado pelos portugueses ao longo do processo de colonização da Amazônia (SAMPAIO, 2003: 9).

Considerações Finais

      Na segunda metade do século XVIII, com o estabelecimento das políticas pombalinas, ocorreram sucessivos casos de epidemias de bexigas, que se propagaram para o Grão-Pará, provavelmente pela fronteira amazônica e também pelas embarcações negreiras que aportavam na região trazendo africanos, que não raramente vinham infectados com a doença. Assim, no decorrer do período ativo do comércio negreiro um avultado número de seres humanos morreu vítima dos constantes surtos de bexigas em solos amazônicos. Essas epidemias atingiram sobretudo os povos indígenas e africanos escravizados, que viviam geralmente em estado insalubre, sem recursos de higiene e saúde.
        Com medo da doença não raramente indígenas e africanos abandonavam suas moradas e fugiam para os matos da redondeza ou distantes dos infectados buscando proteção. Essas fugas não ocorriam somente em tempos de epidemias, pelo contrário, eram constantes na região amazônica, faziam parte do cotidiano das populações indígenas e negros escravizados. Por diversos motivos, os indígenas empreendiam fugas individual ou coletiva, na companhia de outras pessoas, como os escravizados, mas no período de epidemias tornavam mais frequentes. Houve aldeias que foram devastadas pelo contágio das bexigas ou esvaziadas com as frequentes fugas de índios que apavorados embrenhavam-se nos matos, implicando seriamente no desenvolvimento das diversas culturas que dependiam exclusivamente da mão de obra indígena. Dessa maneira, as epidemias de bexigas não apenas contribuíram para o desequilíbrio demográfico, mas afetaram sobretudo o processo de colonização com a falta de mão de obra, importante para o andamento da colonização portuguesa no Grão-Pará.

 Referências

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NOTAS



1 O Cabo Norte era uma capitania ligada diretamente a capitania do Grão-Pará, atualmente a região corresponde em termos geográficos ao estado do Amapá. A vila de São José de Macapá pertencia ao Cabo Norte.

Atualmente é o município de Coari, localizado no estado do Amazonas.

Comentários

  1. De que maneira a expulsão do jesuítas esteve relacionado ao reparcelamento das doenças endêmicas e epidêmicas na região amazônica?


    Mateus de Sousa Almeida.

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    1. Boa noite, com relação a população indígena, argumento que, desde o estabelecimento do Diretório em 1757 e consequentemente com a expulsão dos jesuítas, os indígenas ficaram vulneráveis aos contágios não somente das bexigas, mas de outras doenças. Com frequência eram enviados para diferentes locais de trabalho, muitas vezes insalubres, longas jornadas de trabalhos, alimentação precária. Esses fatores contribuíam diretamente para o adoecimento, principalmente em tempos de epidemias, posto que não possuíam imunidades a certas doenças, como as bexigas, por isso tornaram as principais vítimas da doença.

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  2. Com as doenças trazidas pelos negros transportados ao Brasil, obteve-se uma série de problemas tanto na região amazônica no sentido de população e desenvolvimento, como na cultura, costumes, crenças que pertenciam aos indígenas em que ali viviam, houve a disseminação da população daquela região, visto isso como uma grande perda para a nossa nação, pois ali foi perdido grande parte de culturas, crenças, costumes, enfim uma perda da nossa identidade nacional.
    Autora: Raryelle Mauranna de Araújo Leal.

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    1. Boa noite. Embora exista uma relação direta da propagação das bexigas com o comércio negreiro, eu não considero que a presença africana na região amazônica, nem em outras partes do Brasil, represente uma perda, pelo contrário, a presença africana contribuiu muito com a nossa cultura e com a nossa identidade. As doenças que vieram com os africanos, não eram doenças de africanos, mas sim, doenças de escravizados, consequência direta do sistema de escravidão. Desde o Continente Africano ao Brasil, os africanos enfrentaram vários problemas (fome, sede, doenças, desidratação, etc.) que vão contribuir para o contágio das bexigas e outras doenças infectocontagiosas ao longo do período de escravidão. Assim, como os indígenas, os africanos foram vítimas da escravidão e do tipo de colonização gestada no Continente Americano.

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  3. Olá, boa tarde. Fiquei curiosa sobre um determinado ponto: Você já consegui atentar para a relação entre esses padrões e o perfil sócio demográfico, a identidade étnica, a ocupação e o gênero dos escravizados?

    As. Talyta Marjorie Lira Sousa Nepomuceno

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    1. Boa noite. Indígenas e africanos na condição de livres e/ou escravizados, em diferentes ocupações, constituíram a maior parte das vítimas da doença. A documentação nem sempre mostra o gênero, mas analisando os trabalhos desenvolvidos na região, considero que muitos homens morreram e certamente tornaram as principais vítimas. Mas, é importante observar, que embora a documentação não mostre, no período de epidemias, a mortandade foi geral entre homens e mulheres.

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  4. Boa noite, com relação a população indígena, argumento que, desde o estabelecimento do Diretório em 1757 e consequentemente com a expulsão dos jesuítas, os indígenas ficaram vulneráveis aos contágios não somente das bexigas, mas de outras doenças. Com frequência eram enviados para diferentes locais de trabalho, muitas vezes insalubres, longas jornadas de trabalhos, alimentação precária. Esses fatores contribuíam diretamente para o adoecimento, principalmente em tempos de epidemias, posto que não possuíam imunidades a certas doenças, como as bexigas, por isso tornaram as principais vítimas da doença.

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  5. Parabéns pelo texto. No decorrer do texto você fala sobre o contágio, mas qual era o principal meio de contágio?
    Luiz Samuel Sousa Oliveira

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    1. Obrigado, Luiz. A documentação que analisei não mostra explicitamente como ocorreu o contágio, mas pelas características como descreve os casos, considero que certamente, ocorreu sobretudo pelo contato físico.

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  6. Já que geograficamente as regiões são distantes uma das outras e porque temos essa dificuldade de controlar o contágio?


    Ivanuel Moraes de Sousa (UFMA)

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    1. Embora distante uma região da outra, a doença rapidamente se propagava e circulava entre as regiões, dificultando o controle, principalmente nos períodos de epidemias. A relação de trabalho, as fugas, a correria das populações indígenas (são alguns exemplos), associadas a precária estrutura médica, sobretudo no interior do Grão-Pará, certamente contribuíram para propagação e ao mesmo tempo dificultaram o controle do contágio da doença.

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  7. Quais os principais fatores para essa afirmação de Brito de que "Macapá situava-se em uma região insalubre que tornava propício às doenças, como bexigas, sarampo, diarreias e febres catarrais (BRITO, 1998: 131).?


    Ivanuel Moraes de Sousa

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    1. Tratava de uma região insalubre por conta da área pantanosa e do clima amazônico que possibilitavam o surgimento de doenças como a malária, sobretudo na estação do inverno. Esses fatores associados as péssimas condição de trabalho e a precária alimentação contribuíam para a proliferação de outras doenças que vitimaram, sobretudo os trabalhadores da construção da fortificação de Macapá, na segunda metade do século XVIII.

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  8. Parabéns, pela pesquisa. Um trabalho rico em conteúdo e informações que muitas vezes são negligenciadas e mesmo amenizadas, mas que neste espaço foi bem introduzido e explorado.

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    1. Boa noite, muito obrigado. Acredito que ainda faltam trabalhos na historiografia que possam contribuir com a História das Doenças e da Saúde, não somente no Grão-Pará, mas em todo o Brasil-Colônia.

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  9. Uma pesquisa muito interessante. Você fala da disseminação de doenças, tais doenças neste contexto social poderias ser prevenidas? Como?

    Joice da Conceição Lima, UFMA/Codó

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    1. Boa noite. Vários métodos preventivos foram usados, como a fiscalização da saúde nos portos amazônicos, quarentenas, construção de lazaretos, variolização, remédios caseiros, curandeirismo e outros. A vacina, considerada o método mais eficaz, surgiu no final do século XVIII. Apesar disso, a doença foi erradicada do planeta somete em 1980, de acordo com a OMS. Portanto, antes da erradicação, muitas medidas foram experimentadas para amenizar e controlar a doença.

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  10. Parabéns!
    É uma pequisa de extrema importância histórica e social, sobre o como o descaso afeta e pode destruir povos como os indígenas e negros escravizados. É o enredo que conta a trajetória de uma "nação" que desconhece ou mesmo fecha os olhos para a parte "obscura" de seu passado histórico.
    Mais uma fez, ótima pesquisa.
    Joice da Conceição Lima, UFMA/Codó

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    1. Boa noite, muito obrigado, Joice. Realmente, a pesquisa tem esse objetivo, refletir sobre as mortes de indígenas e africanos escravizados, considerados as maiores vítimas das epidemias de bexigas não somente no Grão-Pará, mas em todo o continente americano.

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