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EDUQUEM OS HOMENS! E AS MULHERES? CASAS DE RECOLHIMENTO COMO PRIMEIRAS FORMAS DE EDUCAÇÃO PARA O SEXO FEMININO NO MARANHÃO SETECENTISMO


Joabe Rocha de Almeide
Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Programa de Pós-graduação em História – PPGHis. Bolsista CAPES. Especializando-se em Ensino de História do Brasil: cultura e sociedade pelo Instituto de Educação Superior Franciscano – IESF.

Ana Leticia Araujo Goes
Graduanda em Licenciatura em Ciências Sociais – UEMA/Campus Caxias


Resumo: O presente estudo tem como cenário inicial a discussão da ausência feminina na educação formal e compreensão de como era transmitida a educação para as moças, visto que não havia estabelecimentos com finalidades exclusivas para o ensino das letras para as mulheres. Esta indiferença ao sexo feminino nos leva a uma inquietação peculiar: como era transmitido o ensino das primeiras letras as mulheres já que não havia escola formal para elas? É importante ressaltar que a chegada da primeira escola para o sexo feminino no Maranhão só se faz presente em 1844, “Colégio Nossa Senhora da Glória”, mais conhecida como “Escola das Abranches”, pois além de ter sido fundada a partir da boa intenção de Dona Marta Alonso Veado Alvarez de Castro Abranches, tinha ainda “suas três filhas e um grupo de intelectuais escolhidos entre os mais notáveis nas ciências e nas letras” (ABRANCHES, 1992, p. 80). Nesse sentido, veremos que as criações das casas de recolhimentos serviram como espécie por muito tempo de escola para as mulheres (não somente no século XVIII, mas perpassando para o século posterior).

Palavras-Chave: Maranhão setecentista. Educação feminina. Casas de Recolhimentos.


Considerações iniciais

Ao fixarmos um olhar crítico sobre o sistema educacional, no Brasil Colônia e pós-colonial no seu todo, enxergamos um lado do contexto histórico: as formas de ensino, bem como as problemáticas e as estruturas inadequadas pela falta de planejamento do Estado, uma literatura que até 1836 não era genuinamente brasileira e os efeitos que o crescimento e o declínio da economia colonial causaram no sistema de ensino. Aqui, se trata do período áureo da agricultura maranhense, a partir de 1755, e da queda de produtividade, no final do século XIX, após o fim da Guerra de Secessão (1861-1865).
Outros elementos importantes que a análise sobre o sistema educacional nos propicia analisar essa problemática são as tradições e costumes, as práticas e representações sociais e religiosas, o afastamento e aproximação portuguesa da Colônia ao perceber que os jesuítas constituíram-se como uma nova ordem de Estado, a relação entre o Estado e a Igreja Católica e quais eram as reais intenções das reformas de Marquês de Pombal.
O cenário econômico do Maranhão, no século XVIII, estava marcado pela pobreza e marasmo. Segundo Mario Meireles (2008), o Estado presenciava uma extrema miséria, com uma agricultura rudimentar e atrasada, em que o cultivo do algodão e do tabaco não passava de suprimentos básicos da sociedade[1]. O agravo da economia foi estendido quando a província do Pará passou a plantar, fiar e tecer panos de tecidos de algodão, pois, até por volta de 1724, o monopólio da produção algodoeira era feita, principalmente, pela província maranhense.
Pela falta de estrutura em todos os setores da esfera social e por causa da fome que assolava a província maranhense, percebemos através dos rastros historiográficos uma produção literária voltada para cartas de contestações sobre o desprezo e mazelas do Estado, por parte da Metrópole, e também sobre fortes críticas do sistema educacional vigente.
João Francisco Lisboa, historiador autodidata, político e jornalista, retratou de forma específica a situação econômica e social do Maranhão colonial como palco da desordem e barbárie, os burgueses e autoridades políticas só se preocupavam em aumentar suas riquezas por meios desonestos. “Leis confusas, incompletas, contraditórias, opressivas, [...] para obviar à influência perniciosa dos princípios gerais dominantes, [...]” (LISBOA, 1990, p. 75) faziam parte desse quadro político ocioso e corrupto na província maranhense setecentista.
Mailson Melo (2014), ao fazer uma análise sobre os escritos deixados por João Lisboa, observa o quanto a província maranhense passava por uma situação lamentável, onde as instruções civis e morais quase inexistentes, as raríssimas escolas criadas pertenciam aos jesuítas, uma economia de subsistência devido às baixas produtividades manufatureiras e agrícolas, pois, os equipamentos e técnicas eram grosseiras e rústicas: “a situação era tão lamentável que em certas ocasiões até a missa estava ameaçada por falta do vinho e do trigo usado para fabricação das hóstias, que vinham de Portugal, assim como o sal” (MELO, 2014, pp. 218-19). Os alimentos e a carne de gado, além de serem caríssimos, só abasteciam o comércio aos sábados. E, mais ainda, por conta do alto preço dos produtos, apenas a classe dominante – grandes produtores de terras, comerciantes, burgueses, administradores políticos da Colônia – é que conseguiam comprar.
Até meados do século XVIII todas as províncias do Brasil eram regidas pela educação da Companhia de Jesus. Os jesuítas tinham como princípio norteador evangelizar os filhos dos colonos nascidos no Brasil e os nativos para a fé católica através da catequese. De fato, atuar como agente educador, transmissor de uma cultura tida como civilizada, era não apenas transmitir a arte de ler e escrever para os colonos e “bárbaros ameríndios”, mas, ao mesmo tempo, convertê-los ao catolicismo, visto que as escolas jesuítas tinham como mérito guerrear contra as ideias do protestantismo.


“Uma educação para o Lar Doméstico”: As Casas de Recolhimentos como instituição de ensino das Primeiras Letras e matrimonial

Ao entrarmos para entendimento do processo de criação das escolas no período colonial sob os domínios jesuíticos, percebemos que a educação tinha como base uma formação de ensino secundário, de seminários e de sermões, no qual para estruturar o ensino na Colônia formaram gratuitamente sacerdotes para a catequese, para depois instruir e educar os indígenas, os mamelucos e os filhos dos colonos brancos. Interessantes destacarmos que somente a elite colonial mandava seus filhos para estudar Direito ou medicina na Europa.
Havia uma separação entre os indígenas e os filhos dos colonos vindos de Portugal ou nascidos na Colônia. Para os índios, a educação se restringia, somente, ao ato de ler, escrever e receber instruções do catolicismo. Mas, apesar dessa educação formal ser caracterizada como básica, veio como uma ruptura das tradições, dos valores e costumes antigos dos índios. Muitas mulheres e meninas, até aquelas de famílias abastardas, e crianças negras não tinha acesso direto a educação formal. A educação para elas se limitavam apenas às aprendizagens domésticas aprendidas dentro do núcleo familiar[2].
O ensino da chamada “Primeiras Letras” até meados do século XVIII estava sob os domínios da Igreja Católica. Sob essa regência, a preocupação da educação religiosa estava voltada para a formação humanística dos filhos da nobreza e da burguesia que começa a surgir na sociedade urbana para que esses pudessem ter acesso as melhores universidades da Europa[3]. Essa classe privilegiada tinha acesso à escola já sabendo ler, escrever e fazer pequenas operações de matemática, pois a família pagava professores particulares para seus filhos, como ressalta o autor Antonio S. Banha de Andrade: “a obrigação de ensinar competia, primeiramente, à família, e tanto a Igreja quanto o Estado completava o que ela não conseguiria por si só” (1978, p. 2). Não havia, até o exato momento, nenhuma preocupação por parte dessas duas instituições de poder, Igreja e Estado, levar algum tipo de ensino às famílias menos favorecias, as crianças, mulheres e escravos, tirando delas o contato com as chamadas “Primeiras Letras”.
Mas, se o sexo feminino estava carente de educação formal, existiam as casas de recolhimentos e os conventos[4]. Entretanto, vale lembrar que estas instituições religiosas não tinham os mesmos seguimentos de educação dada nos colégios. A finalidade e objetivo principal para qual os recolhimentos foram construídos, em meios às contradições das próprias representações e das práticas sociais vivenciadas dentro desses recintos, era como o próprio nome diz “recolhimento”, ou seja, recolher, confinar as mulheres e meninas de todas as idades, que seriam orientadas espiritualmente através de uma educação puramente religiosa.
Porém, é crucial notarmos que a questão da religião era apenas um pano de fundo para algumas instituições, como ressalta Michel Perrot que os “conventos eram lugares de abandono e de confinamento, mas também refúgios contra o poder masculino. Lugares de apropriação do saber” (2007, p. 84). Isso nos deixa claro que em meio a esse paradoxo social, os recolhimentos eram espaços de poder sobre as mulheres, e, também, poder das mulheres.
No Brasil, consta-se que o primeiro recolhimento colonial foi criado em 1576 em Olinda (Pernambuco). O primeiro convento chega a Salvador em 1644, mas apenas em 1699 que o rei, juntamente com o papa, autorizou legalmente o funcionamento chamado de Convento de Desterro da Bahia.
No Maranhão, essas instituições chegaram bem mais tarde do que em outras províncias. O primeiro, chamado de Recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios, só foi fundada em 1753 pelo padre jesuíta Gabriel Malagrida. Outra instituição na província maranhense só foi criada bem mais tarde, em 1855, na regência do presidente Eduardo Olímpio Machado, chamada de Asilo de Santa Teresa.
Apesar de conventos e casas de recolhimentos serem muito próximas quanto à estrutura funcional, a sociedade, bem como as próprias mulheres, não viam com o mesmo olhar o significado social, como ressalta Maria Rodrigues que “[...] os Recolhimentos não eram Conventos nem escolas, situavam-se a meio caminho desses dois modelos e serviam a vários propósitos no tocante à vida das mulheres” (RODRIGUES, 2010, p. 131).
De fato, a clausura feminina nos recolhimentos era um elemento essencial para a organização social e religiosa e, de certa forma, uma maneira de dominação masculina sobre a mulher, pois, apesar de frisarmos o controle masculino dentro de um espaço privado familiar, ocorria também no espaço da Escolar, como explica Pierre Bourdieu que:
[...] o princípio de perpetuação dessa relação de dominação não reside verdadeiramente, ou pelo menos principalmente, em um dos lugares mais visíveis de seu exercício, isto é, dentro da unidade doméstica, sobre a qual um certo discurso feminista concentrou todos os olhares, mas em instâncias como a Escola ou o Estado [...]. (BOURDIEU, 2002, p. 9).
Isso nos dar a noção de que a vida no claustro transmitia, ou melhor, representava a própria condição de mulher na colônia do que simplesmente o ato de devotar. Elemento básico para tal segregação seria o esforço da ação masculina resguardar a virtude e castidade das moças, para que chegassem ao matrimônio com identidades de “Virgem Maria”, onde o perigo da desonra era muito grande.
Outros elementos que, também, caberiam na função desses recolhimentos, principalmente, nas casas de recolhimento, seriam amparar órfãos pobres e mulheres desamparadas, ou órfãs abastardas que estavam sem uma tutela familiar, mulheres agredidas e até aquelas que tinham comportamentos sexuais fora dos padrões impostos pela sociedade, neste caso, transformando o recolhimento em uma espécie de instituição de amparo social. É nesse sentido que percebemos que nas casas de recolhimento a forma de educação transmitida estava voltada mais para educá-las para o casamento do que, propriamente, para a vida religiosa.
Vale ressaltar que as famílias de classe privilegiada economicamente na Colônia percebiam que a representação social da época era que ser mulher religiosa, voltada apenas para os dotes da Igreja, recebia certo reconhecimento pela sociedade. Nesse caso, para as moças que procuravam prestígio na sociedade, os conventos seria o melhor lugar, visto que, as casas de recolhimento era trazer valores matrimoniais mais do que a própria devoção. Interessante que além da pureza, que deveria ser mantida antes e depois da entrada nos Conventos, havia pagamento de um dote para a permanência na instituição.
A criação da primeira casa de recolhimento, no Maranhão, deu-se graças ao padre jesuíta Gabriel Malagrida intercedendo ao rei D. José I por um recolhimento na província. Em Março de 1751, o regente português lança o Alvará de permissão para erigir no estado do Maranhão e Grão-Pará recolhimentos para instruir moças convertidas e as não convertidas ao catolicismo. Contudo, somente, após algumas desavenças entre a autoridade do Bispo Dom Frei Francisco de Santiago e o jesuíta Gabriel Malagrida, em Junho de 1752, foi lançada a pedra fundamental num terreno doado pela Câmara na província de São Luís e no ano seguinte inaugura a construção do Recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios.
Figura: Prédio construído para ser o Recolhimento de N. Sra. de Anunciação e Remédios em 1870 e concluído em 1871. Acabou sendo uma instituição mista: Recolhimento, Colégio e Asilo[1].

Fonte: RODRIGUES, 2010, p. 93.


No início da formação do Recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios, finais do século XVIII, estava destinada à educação civil e, principalmente, moral e religiosa às jovens da elite que viviam à margem do poder masculino por não ter o direito de escolher qual papel social poderia exercer na sociedade, ficando recolhidas para um futuro casamento. Essa instituição devido às mudanças de mentalidades da sociedade urbana e pós-expulsão dos jesuítas, passou a ser regida, não mais apenas pelo aspecto religioso da Ordem de Santa Mônica, mas também, pela presença forte do Estado. Não por acaso, o regimento econômico e administrativo passou a seguir os Estatutos organizados em 1840 ou chamados de Estatutos do Recolhimento[2] de N. Sra. da Anunciação e Remédios.
Dentro dessa instituição percebemos dois aspectos importantes. Primeiro aspecto trata sobre a disciplina e a vigilância constante sobre as mulheres. Isso são elementos imprescindíveis para proporcionar a jovem uma boa educação, reputação moral e religiosa, e que pudessem atingir seus papéis de esposas e mães. Segundo aspecto importante é a distinção social que havia entre as educandas.
Segundo o Estatuto de N. Sra. da Anunciação e Remédios, as moças de classe pobre eram aceitas no Recolhimento a partir dos sete anos de idade e ficariam até os vinte e um anos de idade, que durante esse período seriam sustentadas pelas rendas do Recolhimento. Já as de famílias abastadas, além do prolongamento da idade, onde muitas delas ficavam até o dia do casamento, as suas despesas ficavam por conta dos pais ou responsáveis.
Outros dois elementos de diferenciação social estavam no vestuário e nos métodos e formas de educação dentro do estabelecimento. No que se referem aos trajes como forma de identificação de classe social, as educandas pobres, obrigatoriamente, tinham de usar roupas longas de cor preta, significando que ali dentro do Recolhimento estavam sob o estado de pureza espiritual e a cor da roupa significava também que eram sustentadas pela instituição. Já as educandas de famílias ricas o uso da roupa de cor preta não era obrigatório, porém deveriam usar vestidos de cor escura e não usar qualquer tipo de joias no corpo.
Sobre os métodos e formas de educação ensinadas dentro do Recolhimento de N. Sra. de Anunciação e Remédios as diferenciações também eram percebidas quanto aos objetivos da moça na instituição. De acordo com o Estatuto do Recolhimento de 1840, “[...] A educação recebida no estabelecimento constava das lições de primeiras letras e das prendas domésticas. Uma mestra ensinava a ler, escrever, as quatro operações aritméticas e a doutrina cristã, e a outra mestra ensinava a coser e bordar” (ESTATUTO DO RECOLHIMENTO, 1840, p. 248 apud ABRANTES, 2014, p. 147). Os métodos de ensino eram proporcionados na mesma perspectiva para as educandas pobres e abastadas. É crucial sabermos que mesmo o Estatuto deixando explícito sobre o que deveria ser ensinado dentro do Recolhimento, a utilização dos conhecimentos aprendidos nas aulas diferenciavam-se de acordo com o objetivo de cada moça.
O objetivo de cada educanda estava atrelado à sua condição social ou matrimonial. Segundo a autora Abrantes (2014), o próprio Estatuto deixava normas sobre como cada moça deveria utilizar seus conhecimentos para a instituição ou para benefício próprio.

As educandas pobres deveriam utilizar os conhecimentos obtidos nas aulas de prendas domésticas para realizar alguma “obra proveitosa” para a instituição. Enquanto isso, o tempo livre das educandas ricas era ocupado segundo “o costume observado nas casas de ensino”. (ESTATUTO DO RECOLHIMENTO, 1840, p. 246 apud ABRANTES, 2014, p. 148).
A supracitação não nos deixa dúvidas quanto os mesmos ensinos para todas as educandas, mas, que na divisão do trabalho, dependendo da finalidade de estarem ali dentro do recinto ou da classe social, o Recolhimento fazia uma distinção entre elas. Por exemplo, na divisão de tarefas, as educandas pobres aprendiam a costurar, bordar, fazer flores artificiais para o exercício de um futuro trabalho que pudesse trazer certo ganho financeiro para despesas próprias ou para aumentar a renda do futuro marido. No caso dessas moças pobres, também caberia o ensino das tarefas domésticas para saber fazer as coisas do lar, como cozinhar, cuidar bem dos filhos, arrumar a casa e cuidar do marido, principalmente de sua roupa e como deveria se vestir.
As viúvas já tinham tratamento diferente. Como a maioria das viúvas já vinha de experiências de cuidar do lar, a preocupação da instituição estava em proporcionar o mais rápido possível um novo casamento para elas. Havia preconceito para com as mulheres viúvas por parte da sociedade. O preconceito às viúvas ficava menos aparente quando elas vinham de um casamento rico. Neste caso, formava-se uma nova comunhão matrimonial alicerçada em interesses e conveniência. 
No caso das educandas abastadas, o Recolhimento não se preocupava em ensiná-las as tarefas domésticas, a bordar e costurar, como futuro meio de sobrevivência, visto que, ao chegar o tempo de casarem, a família dela e a do rapaz já havia ajustados acordos entre seus pares. Isso nos faz compreender que a educanda poderia ser pobre, de família privilegiada ou órfã, o que mais interessava no final era a possibilidade de conseguir um marido que pudesse sustentá-la, como ressalta ainda Abrantes que “[...] o casamento era visto como a única carreira destinada às mulheres, sejam ricas ou pobres” (2014, p. 148).
Por mais que estas Casas de Recolhimento pudessem oferecer certo grau de instrução educacional para o sexo feminino, como ensinar a ler, escrever, incentivando para entrar no campo da escrita, e fazer operações básicas/avançadas, o que percebemos de fato é que estas instituições privilegiavam, muito mais, as doutrinas cristãs, o ensino do cozer e bordar, e a guarda virginal para o casamento. Este descaso das brasileiras, longe do círculo do verdadeiro espírito educacional, que edifica o ser humano e reprimi as mulheres por querer estarem dentro da mesma sociabilidade que os homens, é ressaltado por José Cândido, que ao fazer uma biografia de Bisilia Gozyafliri (1209-1261), educadora de respeito na Bolonha, Itália, faz uma reflexão e crítica sobre a educação feminina no Brasil do século XIX: “não podemos deixar de refletir no pouco caso que se faz no Brasil da educação, e ensino das meninas” (FAROL MARANHENSE, nº 95, 1829, p. 412). E continua seu discurso com belas palavras vistas de forma audaciosa para sua época:

[...] Hum certo freio de decencia reprime a grosseira e soltura natural do sexo varoail, e habitua a esse tom de polidez, que caracterisa as sociedades cultas. Pelo lado politico, dificilmente se avaliará até que ponto poderião as Sñr.as influir, utilmente, na opinião entre nós, se caso, recebessem huma educação mais disvellada. [...] Os costumes ganharião muito com huma favoravel revolução na educação das Sñr.as, visto que, o seu imperio seria mais forte, e mais puro. [...] Em uma palavra, - nós não podemos aspirar ao titulo do povô culto e civilisado em quanto a mais bella metade da espécie humana for conservada na ignorancia, e no idiotismo, em quanto passar em proverbio acreditado que á mulher basta a sciência  de arrumar bem hum bahú. Engañao-se os que imagiñao que cumprirão melhor com os seus deveres domesticos aquellas, que forem destituídas de todo o gênero de instrucção: a experiência nos mostra todos os dias o contrario; e pelo raciocínio facilmente o poderíamos demonstrar. Não dizemos que as mulheres se tornem Doutoras, que se lhes procure da uma erudição recondita: não lhe está a especie de educação, que o seu sexo requer; mas entre a ignorancia, e o saber profundo ha hum meio termo, que serve para melhorar o coração, para ornar a carreira da vida e para preencher mais racionalmente a tarefa de qualquer encargo, ou dever. (FAROL MARANHENSE, nº 95, 1829, p. 413). (Grifos do Jornal).

José Cândido faz uma crítica no Jornal reprovando as atitudes dos pais, principalmente a figura paterna, de não aceitarem que suas filhas pudessem ter o prazer de aprender a ler e escrever, fazendo com que as moças crescessem insuficientes de uma instrução educacional capaz de mediar uma conversa intelectual, pois a sociedade masculina reduzia a mulher apenas para a educação do “cozer e coser”. Criticou, ainda, Cândido arduamente os maridos de não aceitarem suas esposas nas rodas de conversações, como ressaltou que “nada há mais infeliz do que encarar-nos com a companheira dos nossos dias como encaramos com uma ignorante, sem podermos comunicar-lhe os pensamentos, [...] diminuindo-lhe em parte a sua felicidade”. (FAROL MARANHENSE, nº 35, 1828, p. 167).
Considerações finais

Percebemos, por meio deste estudo, que todo o conservadorismo colonial sobre as mulheres sendo enraizado para o Brasil imperial com a mesma mentalidade, mudando apenas as instituições de poder e aderindo outras, com os mesmo discursos, só que escritos e falados de maneiras (re)significadas. Como foi, no caso, a atuação de instrução de ensino para as educandas nas instituições chamadas de casas de recolhimento que se processou toda a representação e imagem de um pensamento conservador.
A educação é a arma viva para quem deseja romper com a guilhotina da opressão. Como as mulheres maranhenses não possuíam tal ferramenta, mais distante era sua aceitação na sociedade. O sexo feminino sem acesso à educação, não dispunham de meios para se emancipar, sem oportunidades de trabalhos, sem direito ao sufrágio, nem mesmo à cidadania. Estavam presas em um círculo vicioso, pois,“[...] como lhes faltava o poder político, não tinha acesso à educação, e sem educação jamais teriam poder político” (FLORESTA, 1989 apud COSTA,  2007, p. 496).
A visão de criar uma instituição baseava muito mais na questão da fragilidade do sexo feminino de natureza pecaminosa, e que, por isso, precisava de mais cuidados que o necessário, ajudando-as com princípios sólidos de moral e religião, visto que, a prostituição e a lascividade era frequente entre as mulheres, principalmente, aquelas de classe subalterna. Críticas fortes foram feitas a esse modelo de regulamento. Os jornais da época afirmavam, em seus discursos, que as chamadas “casas das educandas” resolvia um problema, mas acabava criando outros problemas sociais.
Ao educar a moça apenas no intuito de guardá-las pura e virginal para o matrimônio, sem que fossem ensinadas um ofício digno de sobrevivência, e não apenas o ensino de cozer ou trabalhar com flores, preparando-as unicamente para o marido, “que fazia do casamento a única carreira disponível para as mulheres, sendo uma forma de proteger e estimular a ociosidade feminina” (ABRANTES, 2014, pp. 151-152), quando chegasse o limite máximo da idade permitida dentro destas instituições, saiam sem ter nenhum meio de trabalho, tendo, muitas vezes, que recorrer à prostituição.
Para as educandas pobres ficavam ainda mais complicado, pois, como tinha dito anteriormente, as moças abastadas antes mesmo de desses recintos de recolhimentos, os pais já haviam arrumado um noivo, ainda que por contrato de dotes ou por conveniência, e no caso das pobres, o casamento para elas era um subterfúgio, ou como ressalta Abrantes “uma espécie de prostituição legal” (2014, p. 152), na qual ao se verem diante de uma sociedade masculina, que excluía a mulher de qualquer espaço público de trabalho, vender seu corpo para um único homem por toda sua vida, numa forma de celebração de contrato matrimonial, se tornava a solução mais viável. Esse planejamento conscientizador ineficiente sobre a mulher causava “não só a leviandade como a desumanidade com que eram despresadas tantas meninas, até ali educadas pela província, e, assim entregues a inevitavel desgraça” (MARQUES, 1870, p. 37).
Sem o domínio das letras, além de estarem excluídas dos espaços políticos, as dificuldades que as mulheres do século enfrentaram para se firmarem enquanto sexo forte na sociedade, devido a ignorância que assolavam suas vidas, fez com que muitas não tivessem instrução e sem esta não estavam aptas a participarem da vida pública e, consequentemente, não recebiam instrução porque não participava dela, afirma Telles (2008, 406). Nesse viés, ficavam eivadas de produzir quaisquer discursos nos jornais.



Referências

Fontes referenciais
ABRANCHES, Dunshee de. O cativeiro. 2 ed. São Luís: ALUMAR, 1992.
ABRANTES, Elizabeth Sousa. A educação do “Bello sexo” em São Luís na segunda metade do século XIX / Elizabeth Sousa Abrantes. – São Luís: Editora UEMA, 2014;
ANDRADE, Antonio Sousa Banha de. A reforma pombalina dos estudos Secundários no Brasil. – São Paulo: Saraiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1978.
BOURDIEU, Pierre. Dominação masculina / Pierre Bourdieu. Trad. Maria Helena Kuhner. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos / Emília Viotti da Costa.  8 ed. rev. e ampliada. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 2007.
FLORESTA, Nísia. Direito das mulheres e injustiça dos homens. São Paulo: Cortez, 1989.
LISBOA, João Francisco. Jornal de Tímon. Tomo II, vol. 2: apontamentos, notícias e observações para servirem à história do Maranhão. Rio de Janeiro: Alhambra, 1990.
MEIRELES, Mário Martins. História do Maranhão. Imperatriz: Ética, 2008.
MELO, Mailson Gusmão. João Francisco Lisboa e o Jornal de Tímon: Apontamentos, notícias e observações para servirem à história do Maranhão. In: BITENCOURT, João Francisco; GALVES, Marcelo Cheche (orgs.). Historiografia Maranhense: dez ensaios sobre historiadores e seus tempos / João Francisco Bitencourt; Marcelo Cheche Galves. – São Luís: Café & Lápis; Editora UEMA, 2014.
PERROT, Michel. Minha história das mulheres. Tradução Ângela M. S. Côrrea. São Paulo: Contexto, 2007.
RODRIGUES, Maria José Lobato. EDUCAÇÃO FEMININA NO RECOLHIMENTO DO MARANHÃO: o redefinir de uma instituição. 2010. 154f. Dissertação (Mestrado em Educação) Curso de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do Maranhão. São Luís. Disponível em: http://www.tedebc.ufma.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=573. Acesso em: 03/05/2015.
SILVA, Maria Beatriz Nizza. Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro (1808 – 1821). São Paulo / Brasília, Ed. Nacional / INL, 1977.
_________. Cultura no Brasil colônia / Maria Beatriz Nizza Silva. – Petrópoles: Vozes, 1981.
TELLES, Norma.  Escritoras, Escritas, Escrituras. In: BASSANEZI, Carla (coord. de textos). História das Mulheres no Brasil / Mary Del Priore; Carla Bassanezi. 9 ed. São Paulo: Contexto, 2008.
Fontes primárias
ESTATUTO DO RECOLHIMENTO DE NOSSA SENHORA DA ANUNCIAÇÃO E REMÉDIOS, 1840. In: ABRANTES, Elizabeth Sousa. A educação do “Bello sexo” em São Luís na segunda metade do século XIX / Elizabeth Sousa Abrantes. – São Luís: Editora UEMA, 2014;
JORNAL FAROL MARANHENSE. Nº 35, São Luiz (Maranhão). 30 de Mayo de 1828. In: Acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
JORNAL FAROL MARANHENSE. Nº 95, São Luiz (Maranhão). 5 de Junho de 1829. In: Acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
MARQUES, Cezar Augusto. Diccionario Historico-geografico da Provincia do Maranhão. Typografhia do Frias, 1870. In: Acervo Digital da Biblioteca Digital Benedito Leite – BPBL.



[1] A figura acima mostra o prédio onde funcionou o Recolhimento de N. Sra. de Anunciação e Remédios. A partir de 1870, essa casa tornou-se mista, pois, passou a ser divida entre Recolhimento, asilo e colégio[1]. Cada um com seus estatutos próprios. O Estatuto do Colégio de 1872 definiu o primeiro andar como uso exclusivo dele. Para isso foram organizadas salas de aulas, um refeitório para as educandas, três dormitórios com capacidade de acomodar até cem moças. No andar de baixo ficou definido que seria o Recolhimento de N. Sra. de Anunciação e Remédios. Quando o asilo extinguiu-se, as asiladas foram transferidas para o mesmo prédio ficando-as também na parte térrea, só que separadas das Recolhidas.
[2] Segundo a autora Nizza da Silva, todo os recolhimentos pós-expulsão dos jesuítas passaram a ter um Estatuto.  Temos, por exemplo, o Estatuto do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória e os Estatutos do Seminário Episcopal de Nossa Senhora das Graças da cidade de Olinda. Afirma Nizza da Silva que “as meninas eram, portanto, educadas num ambiente de clausura, de fechamento numa pequena sociedade de pessoas do seu sexo” (1981, p. 72). Para compreender outros recolhimentos e seus estatutos é importante. Ver: SILVA, 1981, pp. 68-81.



[1] Para compreender a economia setecentista maranhense é importante um aprofundamento em: MEIRELES, 2008; COSTA, 2004, pp. 51-80.
[2] Veremos, mais adiante, que com a chegada dos primeiros recolhimentos no Maranhão essa educação limitada, repassada, apenas, dentro do núcleo familiar e voltada, somente, para as aprendizagens domésticas, se estende para essas instituições que passaram a ensinar, além das tarefas de cuidar do lar, como o ofício de cozer e bordar, aprender de forma básica a ler e escrever.
[3] Quando explicamos que os filhos dos donos de terra e dos grandes comerciantes se educavam antes mesmo de irem aos colégios jesuítas e depois receberiam uma formação superior no estrangeiro, tal privilégio era, apenas, para o sexo masculino.
[4] Conventos e casas de recolhimento são muitos assemelhados na questão de estrutura e finalidades funcionais. Ambas construídas em perímetros urbanos e datadas desde o final do século XII. Os recolhimentos chegaram em Portugal no final do século XV. Como estes só chegaram ao Brasil Colônia nos finais do século XVI, a classe senhorial, enviava suas filhas para os recolhimentos metropolitanos. Muitos recolhimentos só foram construídos próximos a saída dos Jesuítas em 1759 e outros só puderam ser erguidos no período de Pombal, adotando aqui novas normas funcionais, como é o caso do Recolhimento de N. Sra. da Conceição da Divina Providência em São Paulo (1774) e o Recolhimento de São Raimundo na Bahia (1775).


Comentários

  1. Parabéns Joabe Rocha pelo trabalho. Percebo que a educação para a mulher foi sempre algo extremamente limitado em termos de ensino, englobaria o escravo também dentro dessa lógica. Porem, sabendo dessa ideologia de ensino estabelecida no período, que é refletida nas escolas de ofício, poderíamos indicar o ensino de época como um mecanismo de controle social? Haja vista que direcionava a mulher a tarefas domésticas e limitadas a sua atuação no contexto social.

    Ruan David Santos Almeida acadêmico do CESC-UEMA.

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  2. Bom tarde Ruan David. Interessante sua pergunta. Sim! sem sombra de dúvidas havia todo um mecanismo de controle social sobre o sexo feminino dentro destes recintos. Até mesmo porque o ensino das Primeiras Letras não era o foco principal, embora fizesse parte das normas. Mas sim, como pano de fundo, estava voltado para a educação doméstica e a guarda da pureza (virgindade).

    Para facilitar ainda mais a resposta mando esta citação:

    "O sistema de controle e normas de comportamento das internas, reguladas por regimentos específicos da Casa, visava imprimir uma disciplina rígida capaz de moldar antigos hábitos e comportamentos. As educandas sabiam que, a todo instante, havia uma vigilância sobre elas e caso não cumprissem, corretamente, com as normas da instituição poderiam sofrer advertências ou mesmo punições severas, como ser mandada de volta à família. A atuação das funcionárias ou daqueles que trabalhavam dentro do asilo, com os olhares a todo instante sobre essas moças, nos faz lembrar o pensamento de Michel Foucault, como se ali dentro houvesse uma espécie de vigiar e punir, como afirma dizendo que “é absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre alerta, pois em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar” (FOUCAULT, 1987, p. 158).
    Essa regra de vigiar sem exceção e sem hora, nos faz retornar ao Recolhimento de N. Sra. de Anunciação e Remédios, pois, o Estatuto do Recolhimento alertava que: “[...] lançará suas atentas vistas sobre todas que vivem no recinto deste Estabelecimento, velando que sejam observados os preceitos do Evangelho, as Leis da Igreja, que tenham inteira execução os estatutos da Casa [...]” (ESTATUTO DO RECOLHIMENTO apud CASTRO, 2009, p. 355).
    De uma forma bem compreensível, a presença do poder dentro de qualquer uma dessas instituições, na forma de mando, obediência e disciplina, conferia a estabilidade e a decência na administração e organização da Casa". (ROCHA, 2017, p. 64).
    Esta citação foi retirada do livro: ROCHA, Joabe. "Escritos em Migalhas": O sexo feminino em busca da educação formal e de espaços na literatura no maranhão oitocentista. 1 ed. - Rio de Janeiro: Multifoco, 2017.
    Recomendo ver o livro disponível em: https://editoramultifoco.com.br/loja/product/escritos-em-migalhas/

    Por: Joabe Rocha de Almeida

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  3. Muito obrigado pela indicação Joabe. Percebo sempre esse mecanismo de controle social dentro das instituições de ensino maranhense de época.

    Parabéns pelos escritos, irá me ajudar em um trabalho que estou idealizando!!

    Ass. Ruan David Santos Almeida acadêmico do CESC-UEMA.

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    1. Olá, Ruan David. Podemos pensar pela óptica de como estes recintos serviram por muito tempo como mecanismo de controle social, já que ele ditavam na vida privada feminina as formas de agir e pensar. Vale ressaltar que as próprias leis, valores, moral e Religião foram fatores determinantes na base destas instituições de recolhimentos. A moça (ainda na fase inicial da adolescência) já entrava com a consciência formada de que ao sair da Casa de Recolhimento, aos 17 anos, iria direto para os preparativos de casamento que o pai da moça conseguiu formalizar. Típico de matrimônio arranjado ou como ressalta Elizabeth Abranthes, na obra o dote faz a moça, que as meninas entravam e saíam já na intenção única para um casamento e o que aprendiam era voltada para a profissão do lar.

      Por: Ana Leticia Araújo Goes

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  4. Parabéns. Ótimo trabalho. A história da educação reflete muito a sociedade onde ela se desenvolveu.
    Ivan Francisco Viana de Lima

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  5. Obrigado pela leitura de nosso trabalho Ivan Francisco.

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